quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Natal: Recordando Ictus



Durante determinado período do ano acontecem as festas natalinas. É muito bela essa revivificação da crença cristã. Quase sempre, porém, o seu propósito primordial fica esquecido.

Natal. O que representa essa comemoração que surgiu de um acontecimento que transformou a rota e o calendário de grande parte da Humanidade?

De escriba para escriba, de povo para povo, mil e mil vezes foram contadas a história, o mito e a lenda do Cristo. E mil vezes ainda será necessário repeti-las para que a essência não morra, é necessário que o nascimento inicie a cada ano para que a vida e o martírio sejam compreendidos e que a ressurreição se repita após os três dias de silêncio. Não é necessário ser católico ou cristão para compreender esta que é a mais maravilhosa lição de amor e de redenção de todos os tempos.

Recontemos a história para aqueles que a esqueceram:

Há pouco menos de 2000 anos uma voz clamava no deserto, exortando o povo: “Arrependei-vos, arrependei-vos.” Era João, o Batista, de alcunha Iocanã, que preparava o caminho para outro profeta maior, de asas mais vastas. Este tinha por nome Jesus, nascido em Belém, mas de família oriunda de Nazaré. Conforme consta nos apócrifos das cavernas do Mar Morto, era o sétimo filho do carpinteiro José, viúvo, e o primogênito de Maria, virgem essênica. Esse profeta maior, anunciado por Isaías e pelo próprio anjo Gabriel, havia sido gerado pelo Espírito Santo, e vinha com a impressionante missão de completar a Lei de Moisés, adaptando-a à mudança dos tempos. E mais ainda: sublimar todas as milenares doutrinas existentes antes dele. Sublimar como? Através do ensinamento e do ato do perdão, último estágio de aprendizado nesta Terra de vãs ilusões.

Conforme consta nos autos e testamentos dos Evangelistas, o Verbo se fez carne entre o povo humilde da Terra, no seio da família de um simples carpinteiro. E três magos do Oriente seguiram uma estrela cintilante, e vieram de muitas distâncias, sabendo que encontrariam um novo rei, diferente da opulência dos príncipes e dos soberanos. E os magos encontraram o menino e presentearam-no com ouro, mirra e incenso, e se inclinaram diante dele porque sabiam que naquele momento iniciava o Reinado do Peixe, o peixe que alimenta os que têm fome, o peixe que respira na água viva do Espírito. E esse seria o símbolo essencial dos primeiros cristãos.

Esse novo rei veio ensinar a humildade e a demonstrou em três momentos principais da existência: no nascimento, na vida e na morte – nascendo entre as palhas de uma rude manjedoura na gruta de Belém; depois, vivendo o medo em lágrimas no Getsemâni, e mesmo assim aceitando submisso a taça amarga do martírio, compreendendo a dificuldade e o peso de ser Homem com qualidades de Deus; e, enfim, morrendo - seguindo de cabeça baixa, humilde e triste, e ainda assim sereno, como um cordeirinho manso que é puro e que é levado para a matança do sacrifício final.

Historica e mitologicamente termina aqui a vida de um Homem que se deu em sacrifício para despertar outros homens para a humildade e o perdão, redimindo-os da cegueira e do egoísmo desvairado.

Mas, misticamente, acaso terminou a caminhada ao Calvário? Será preciso repetir a história, será preciso recriar o nascimento, será preciso reconstruir a cada ano no símbolo do Presépio o propósito do Nazareno? E nada mais? Até quando?

Desde 2000 anos essa voz clama aos desertos de nosso íntimo, exortando-nos ao amor ao próximo, à caridade, à solidariedade, à compaixão aos que sofrem. E após 2000 anos a humanidade continua se contorcendo em dor: sob o jugo das manipulações, na opressão dos fortes sobre os fracos, no acúmulo de posses materiais, na cruel competitividade econômica, na sexolatria, no entorpecimento dos sentidos e na eterna cegueira do coração.

Neste Natal, quando olharmos a pequenina imagem do Menino que sorri de braços abertos entre as palhas e entre os mansos animais, devemos vislumbrar nele o Homem, o adulto que em breve virá e que também ficará de braços abertos em um clamor silencioso, com a súplica humilde de quem sempre espera e aguarda uma mudança de comportamento de seus seguidores.

E no exato instante da repetição do nascimento, e com ele as bebidas e a comilança, os fogos coloridos no céu, e com eles os abraços eufóricos e os apertos de mão calorosos, é preciso que reflitamos: até quando faremos nascer o Menino para depois levá-lo ao sacrifício? Até quando vamos sacrificar esse Anjo do Pai Eterno para que a água viva continue a cobrir o pó da Terra?


Dezembro de 1999


Historiadores de renome e alguns estudiosos bíblicos dizem que os evangelhos foram forjados, que os pais de Jesus não viajaram, que não foram a Belém, que Jesus foi gerado e nasceu mesmo na aldeia de Nazaré, pois o único recenseamento da época, registrado oficialmente, ocorreu somente dez anos após o nascimento do menino galileu. A contagem era feita no próprio lugar onde habitavam os povos conquistados por Roma, mesmo porque jamais poderia existir uma contagem populacional em que as pessoas necessitassem de se locomover ao local de origem; em qualquer período da história seria economicamente inviável uma medida assim, sem qualquer lógica. Mas esse fato não importa tanto.

Muitos adeptos das tradições esotéricas e gnósticas afirmam que Jesus não morreu na cruz, que na verdade o seu corpo encontra-se enterrado em Srinagar, norte da Índia, onde padeceu os momentos finais devido aos ferimentos da crucificação. Dizem que todos os acontecimentos foram partes de um projeto grandioso, idealizado muito antes, com o objetivo de reconstruir o mito do Messias; que Maria, seu irmão José de Arimatéia e outros sábios da comunidade essênica ajudaram nesse plano para que se cumprisse a profecia de Isaías, elegendo Jesus como o salvador esperado. Esse, penso eu, também foi o argumento na estrada de Damasco que convenceu Paulo de Tarso a se tornar cristão e dar continuidade ao elevado projeto, não apenas o de subjugar Roma, mas de abrir caminhos mais iluminados para a Humanidade. Conforme essa leitura, nunca houve literalmente a ressurreição de corpo e espírito, um dos dogmas máximos do cristianismo, embora o símbolo seja verdadeiro, pois certo é que o Espírito como água que sacia e a idéia do corpo ressurrecto - pão que alimenta - continuaram vivos na doutrina.

Detalhes minuciosos do que poderia ter sido a história por trás da história não deveriam nos importar tanto. O que importa de verdade é o Verbo, a Palavra, a lição que o Mestre nos ensinou: os pensamentos e os atos sublimes de amor e perdão que Cristo trouxe para completar a doutrina de outros avatares do passado. Além das palavras santas o que importa é o exemplo que Jesus nos mostrou, indo para o patíbulo com humildade e muita coragem. E no silêncio da jornada nos dizia, conforme compreendo:

Não temam a morte. Ela não existe da maneira como vocês pensam. Há um Reino Espiritual muito mais vasto do que esses limites que os olhos alcançam. Todos somos peregrinos em direção à consciência da Luz, porque todos, desde sempre e todo o sempre, pertencemos fisicamente ao Átomo original que tudo abarca, e espiritualmente já somos Um com o Pai. E a única forma de homenagear o Pai é amando os irmãos. Mas façam o bem e sejam justos simplesmente pela alegria que o bem faz aos outros e a nós mesmos, não esperando recompensas, pois elas virão como acréscimo. O Amor por si só há de nos ensinar e iluminar. Não tenham medo!


Dezembro, 2009

sábado, 19 de dezembro de 2009

Saint-Saëns: Oratório de Natal


 
Os músicos alemães dos Secs. 17 e 18 criaram os mais grandiosos oratórios sobre o tema do Natal: Weihnachtshistorie (História da Natividade, 1660) de Heinrich Schütz, um dos primeiros que aborda o tema nesse gênero lírico-dramático, já é obra-prima; depois, Bach, com as seis magistrais cantatas que compõem o Oratório de Natal (1934); e, alguns anos depois, o mais belo oratório de todos, O Messias (1742) de Handel; após mais de dois séculos e meio continua sublime e irretocável.

Os franceses, embora não tenham deixado oratórios tão poderosos como os citados, também contribuíram com obras de valor. Basta lembrar de L’Enfance du Christ (A Infância de Cristo, 1854) de Berlioz. Ora dramático (o Sonho de Herodes), ora lírico (A Fuga para o Egito) é todo estruturado com coros de câmara e reduzido acompanhamento instrumental, que surpreende em um compositor que dava tanta ênfase à orquestração extravagante.

E não podemos esquecer do Oratório de Noël, que Saint-Saëns criou na espontaneidade de sua juventude, com apenas 23 anos. Obra modesta, porém rica em lirismo contemplativo, continua muito executada nas associações corais do mundo todo, merecidamente. Encanta, do início ao fim. Prestem atenção no trio Tecum principium para soprano, tenor e baixo, acompanhados pela harpa e órgão. Que maravilha!

Camille Saint-Saëns (1835-1921)


Oratorio de Noël, Op. 12 (1858) [39:38]

1-Prelude (Dans le style de Séb. Bach) (3:16)
2-Recit et Choeur: Et Pastores erant - Gloria (coro) (5:47)
3-Air: Expectants expectavi Dominum (soprano) (4:08)
4-Air et Choeur: Domine, ego credidi (tenor e coro) (4:01)
5-Duo: Benedictus qui venit (soprano e baixo) (4:03)
6-Choeur: Quare fremuerunt gentes (coro) (3:59)
7-Trio: Tecum principium (soprano, tenor e baixo) (4:23)
8-Quatour: Alleluja (soprano, soprano, contralto e baixo) (2:14)
9-Quintette et Choeur: Consurge, Filia Sion
(soprano, soprano, contralto, tenor, baixo e coro) (5:29)
10-Choeur: Tollite hostias (coro) (2:18)

Coro Bach e Orquestra Bach de Mainz
Verena Schweizer (soprano)
Edith Wiens (soprano)
Helena Jungwirth (contralto)
Friedreich Melzer (tenor)
Kurt Widmer (baixo)
Hans-Joachim Bartsch (orgão)
Barbara Biermann (harpa)
Diethard Hellmann (condutor)

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terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Pablo Neruda: Os Construtores das Estátuas


(...)

Tu me perguntarás se a estátua em que tantas
unhas e mãos, braços escuros fui gastando,
te reserva uma sílaba de cratera, um aroma
antigo, preservado por um signo de lava?

Não é assim, as estátuas são o que fomos, somos
nós, no nosso rosto que olhava as ondas,
nossa matéria às vezes interrompida, às vezes
continuada na pedra semelhante a nós.

(...)

Arranharás a terra até que nasça
a firmeza, até que caia a sombra na estrutura
como sobre uma abelha colossal que devora
o seu próprio mel perdido no tempo infinito.

Tuas mãos tocarão a pedra até lavrá-la
dando-lhe a energia solitária que possa
subsistir, sem se gastarem os nomes
que não existem,
e assim de uma vida a uma morte, amarrados
no tempo como uma única mão que ondula,
elevamos a torre calcinada que dorme.

(...)

Olhai-as hoje, tocai esta matéria, estes lábios
têm o mesmo idioma silencioso que dorme
em nossa morte, e esta cicatriz arenosa,
que o mar e o tempo como lobo lamberam,
eram parte de um rosto que não foi derrubado,
ponto de um ser, cacho que derrotou cinzas.

Assim nasceram, foram vidas que lavraram
sua própria cela dura, seu panal na pedra.
E este olhar tem mais areia que o tempo.
Mais silêncio que toda a morte em sua colmeia.

Foram o mel de um grave desígnio que habitava
a luz deslumbrante que hoje resvala na pedra.


(trechos de Os Construtores das Estátuas,
em Canto Geral, 1950)


Pablo Neruda (1904-1973)

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

NATAL com Vaughan Williams, Britten, Rodrigo, Villa-Lobos, Poulenc e Honegger


 
Grandes compositores eruditos do século XX dedicaram-se ao tema do Natal, principalmente na Inglaterra, onde a representação da Natividade no palco é tradição, através de masques, pageants e carols, expressões típicas dos britânicos.

Ralph Vaughan Williams (1872-1958), a essência da música inglesa de todo o século XX, amava o Natal e criou várias obras natalinas, entre as quais a longa cantata Hodie, além de On Christmas Night, masque inspirada na obra de Dickens. Não foi um acaso que também sua última obra tenha sido uma peça da Natividade The First Nowell. Mas de todas a que permanece mais bela e espontânea é a Fantasia on Christmas Carols, a primeira que compôs sobre o tema. Utiliza quatro carols que o próprio compositor redescobriu nas aldeias de Somerset, Herefordshire e Sussex e preservou como folclore. O resultado é um hino contagiante, uma peça belíssima, entoada por um barítono, simbolizando o pastor, e um coro. Nesta versão são acompanhados pelas cordas e órgão.

Benjamin Britten (1913-1976), outro britânico que também investigou o folclore, e paralelamente se tornou no país o maior compositor de óperas desde Purcell, escreveu na juventude diversas peças corais natalinas: Christ’Nativity, A Boy Was Born, e a mais admirável de todas A Ceremony of Carols sobre poemas de Gerard Bullett, escritos em inglês antigo. Cantado por um coro de meninos e solistas, acompanhados por harpa, o conjunto de carols transmite paz celestial de uma beleza que enternece.

O espanhol Joaquín Rodrigo (1900-1990) pesquisou muito o folclore da Espanha antiga, com especial enfoque no século XVIII, (re)criando-o com criatividade em suas obras. Daí surgiram deliciosas peças como estas duas canções com coro que pertencem ao 'Retablo de Navidad': Cantan por Belén pastores e A la Clavelina, com sons de flauta e ritmos que só Rodrigo consegue.

O brasileiro Villa-Lobos (1887-1959) deixou-nos um imenso catálogo com obras em quase todos os gêneros eruditos, e centenas de canções folclóricas, coletadas e harmonizadas, mas poucas sobre o tema natalino. Apesar de ser uma obra de circunstância, não poderíamos deixar de lado este belo e raramente gravado Canto do Natal, música de Villa-Lobos sobre poema de Manuel Bandeira.

Na França, país que também deixou belíssimas obras sobre o Natal, encontramos o grande compositor Francis Poulenc (1899-1963), que foi 'enfant terrible' na juventude e, após a perda dolorosa de um amigo, transformou-se totalmente a ponto de se converter ao catolicismo e compor algumas das mais sinceras obras sacras do século, entre as quais estes quatro motetos a capella de uma suavidade angelical, perfeitas gemas de otimismo cristão: Quatre Motets pour les Temps de Noël (com textos em latim): 1-O magnum mysterium, 2-Quem vidistis pastores, 3-Videntes stellam e 4-Hodie Christus natus est.

E, por fim, uma Cantata de Noël, das poucas no século XX com real elaboração erudita. Última obra do suiço Arthur Honegger (1892-1955), hábil no gênero oratório e em sinfonias complexas, a peça não foge do estilo denso do compositor. O libretto de César von Arx utiliza textos latinos como De Profundis e Laudate Dominum, canções folclóricas francesas e outras conhecidas no mundo todo como Estrela de Belém e Noite Feliz. A música inicia sombriamente: o coro feminino e o coro masculino crescendo alternados sugerem a tristeza do mundo imerso nas trevas. Após um longo e uníssono Amén, um coro de crianças anuncia a luminosidade da estrela que surge trazendo as boas-novas: o nascimento do menino-Rei. O final é um hino de exaltação à alegria. Trata-se de um desfecho digno, uma despedida comovente de Honegger. Talvez não seja a mais bela, mas sem dúvida é a obra mais elaborada e densa nesta coletânea.

Eis um conjunto de obras de compositores modernos e acessíveis, que criaram em linguagem inovadora, mas não adotaram o exagerado hermetismo que quase sempre impede a comunicação com o grande público. A compilação, da maneira como está aqui, não se encontra em lojas de disco. Agrupei as peças motivado pelo gosto particular, que agora compartilho pensando no evento cristão mais importante: o Natal, um tempo de alegria e agradecimento pelo Ser divino que habitou espiritual e fisicamente entre nós.

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Natal.VWilliamsBrittenVillaLobosetc.zip

Ralph Vaughan William
Fantasia on Christmas Carols (1912)
John Barrow (baritone)
Choir Guildford Cathedral – String Orchestra

Gavil Williams (organ)

Barry Rose (conductor)

Benjamin Britten
A Ceremony of Carols (1942)
Cambridge King’s College Choir

James Clark (tenor)Julian Godlee (treble)
Osian Ellis (harp)
Sir David Willcocks (conductor)


Joaquín Rodrigo
Retablo de Navidad nos. 1 e 8 (1952)
Raquel Lojendio, soprano [1]
Coro de la Comunidad de Madrid
Orquestra de la Comunidade de MadridJosé Ramún Encinar (direction)

Heitor Villa-Lobos
Canto de Natal (1945)
Coro da Rádio Ministério de Educação e Cultura
Isaac Karabitschevsky (regência)

Francis Poulenc
Quatre Motets pour le Tempos de Noël (1952)
Robert Shaw Festival Singers
Robert Shaw (director)


Arthur Honegger
Cantate de Noël (1953)
Camille Maurane, baryton
Choeur National de l’ORTF
Orchestre National de l’ORTF
Henriette Puig-Roget, orgue
Jean Martinon (direction)


 

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Lassus: Psalmi Davidis Poenitentiales





















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Psalmi Primus, Secundus, Tertius
CD1.PsalmiDavidispoenitentiales.Herreweghe.rar

Psalmi Quartus, Quintus, Sextus, Septimus
CD2.PsalmiDavidispoenitentiales.Herreweghe.rar

Covers
Covers.PsalmiDavidispoenitentiales.rar

Mergulho













Era dessas noites claras.
Círculos de espumas boiavam
nas águas de brancas nebulosas.

No alto da palmeira
o menino de corpo moreno
tecia uma tanga de ramos
apoiado no entrelaçado
das folhagens.

Observava o redemoinho de
faces, cabelos e lábios.
E as espumas - estrelas
brancas, pálidas, flutuantes,
algumas pontas submersas
nas ondas, cobriam o mar.

Observava a dança silenciosa
dos fantasmas sobre as águas.
Homens de barbas longas,
uniformes envelhecidos,
e mulheres de saias esvoaçantes,
em rodopios orgíacos.
Vinham à tona festejar a lua
e mais uma vez reclamar
os corpos consumidos.

De um lado, tremulando na brisa
o mastro, as velas, a bandeira.
Galeão espanhol
em ruínas.

O menino deixou cair
a tanga em movimentos espirais.
Saltou do alto dos ramos, em voo.
Mergulhou no oceano branco,
bebeu a enxurrada de rostos,
pressionou a guelra dos pulmões,
atravessou as tábuas soltas,
os peixes, as ossadas,
a grande flecha de lodo,
apanhou no fundo das águas
a ostra de pedrinhas coloridas
e voltou para a superfície
com os cabelos envoltos em algas.
Trazia no rosto
imagens aprisionadas
em mil semblantes do tempo,
dos destroços de uma
Civilização desconhecida.

(em Imagens, 1990, Editora Nova Safra, Belo Horizonte)

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Carlos Drummond de Andrade: Tributo a Chaplin


Chaplin em Luzes da Cidade, cena inesquecível

Drummond no ano da publicação do poema


Publicado em 1945, no volume A Rosa do Povo, este longo poema de Carlos Drummond de Andrade é um dos mais belos e comoventes tributos a Charles Chaplin, gênio inquestionável do Cinema.

De fato, quem poderia esquecer do ator Chaplin, que deu vida a Carlitos, o vagabundo generoso, um dos mais ricos personagens que a Sétima Arte já criou? Após ele, qual cineasta deixaria de render homenagem ao seu legado? Recordemos O Garoto, Em Busca do Ouro, O Circo, Tempos Modernos e o imprescindível Luzes da Cidade, que é a obra-prima absoluta. Em todos esses títulos, o diretor e roteirista Chaplin elaborou uma linguagem universal contendo toda gama de emoções e pensamentos, utilizando-se apenas de expressão fisionômica e gestos. Na verdade, "apenas" não é a palavra correta, pois Cinema é imagem e movimento. E, neste sentido, como não admirar o Chaplin coreógrafo? O compositor Debussy, outro gênio, crítico severo que não engolia qualquer coisa, ao encontrar com Chaplin, disse-lhe que os movimentos de Carlitos eram dança, ballet, pura arte de um bailarino nato. E quem deixaria de valorizar também o Chaplin compositor, que nos deixou belas trilhas, entre elas a inesquecível Luzes da Ribalta?


Sim, acredito que as homenagens, por mais mais vastas que sejam, ainda não alcançam com justiça esse artista multifacetado.

A sólida arte literária de Drummond nos encanta pela sinceridade e riqueza de metáforas. Lendo este poema, aqueles que conhecem a obra de Chaplin, o genial ator-cineasta, vão se emocionar com a viagem nostálgica, pois o poeta menciona trechos importantes de vários filmes.

Sem mais delongas, ei-lo:

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Voltaire: Os Dois Consolados


O grande filósofo Citófilo dizia certa vez a uma mulher desolada, e que tinha razões de sobra para isso:

“A rainha da Inglaterra, filha do grande Henrique IV, foi tão infeliz quanto a senhora: expulsaram-na de seus domínios: esteve prestes a naufragar numa tempestade; assistiu à morte de seu real esposo, no cadafalso.”

“Lamento-a” – disse a dama; e pôs-se a chorar seus próprios infortúnios.

“Mas lembre-se de Maria Stuart” – insistiu Citófilo. “Ela amava muito honestamente a um bravo músico que tinha uma bela voz de baixo. O marido matou-lhe o músico à vista dela; e depois a sua boa amiga e parenta , a Rainha Elizabeth, que se dizia virgem, mandou cortar-lhe o pescoço num cadafalso forrado de negro, depois de a ter conservado prisioneira durante dezoito anos.”

“Cruel destino” – respondeu a dama; e tornou a abismar-se na sua melancolia.

“E com certeza já ouviu falar” – continuou o consolador – “na bela Joana de Nápoles, aquela que foi presa e estrangulada?”

“Lembro-me confusamente” – respondeu a aflita senhora.

“Pois bem, devo então contar-lhe o que aconteceu a uma outra grande princesa, a quem ensinei filosofia. Tinha ela um namorado, como acontece a todas as grandes e belas princesas. Uma vez o pai entrou-lhe no quarto e ali surpreendeu o amante, que tinha as faces em brasa e cujo olhar fulgurava como um diamante; a dama estava também muito animada de cores. A cara do jovem desagradou de tal maneira ao pai, que este lhe aplicou o mais formidável bofetão de que há memória na sua província. O amante pegou um par de tenazes e rachou a cabeça do sogro, que só agora se está curando, e ainda tem as cicatrizes do ferimento. A amante, desesperada, saltou pela janela e destroncou o pé; de maneira que hoje coxeia visivelmente, embora tenha em compensação um corpo muito bonito. O amante foi condenado à morte por haver quebrado a cabeça de tão alto príncipe. Imagine o estado em que não estava a princesa quando levavam o amante para a forca. Visitei-a durante muito tempo, enquanto ela se achava na prisão: só me falava das suas desgraças.”

“Por que não quer então que eu pense nas minhas?” – retrucou a dama.

“É porque não deve” – replicou o filósofo. “Pois, havendo tantas e tão grandes damas com tamanhas desgraças, não lhe fica bem desesperar-se. Pense em Hécuba, pense em Níobe.”

“Ah !” – exclamou a dama. “Se eu tivesse vivido no tempo destas últimas, ou no de tantas belas princesas, e, para as consolar, lhes contasse o senhor as minhas desgraças, acha que elas lhe dariam ouvidos?”

No dia seguinte, o filósofo perdeu o seu filho único, e esteve a ponto de morrer de dor. A dama organizou então uma lista de todos os reis que haviam perdido os filhos e levou-a ao filósofo. Este a leu, achou-a bastante exata, e nem por isso chorou menos.

Três meses depois tornaram a encontrar-se, e muito se espantaram de achar-se mais alegres. E mandaram erigir uma bela estátua ao tempo, com a seguinte inscrição:

ÀQUELE QUE CONSOLA...




Voltaire
(pseudônimo de François-Marie Arouet)
(1694-1778)


domingo, 11 de outubro de 2009

Uma Reflexão Ecumênica


O homem tem vários direitos, inclusive o de permanecer na escuridão e na ignorância voluntária. Mas o homem que busca a luz do conhecimento também merece existir. Não devemos silenciar o filósofo, o poeta e os artistas. Não devemos sufocar a voz do estudioso e do homem de espírito. Deixemos que eles expressem opiniões, deixemos que distribuam suas pérolas àqueles que sentem necessidade delas.

A Busca do Esclarecimento


Aquele que busca o conhecimento intelectual e moral não é, em hipótese alguma, um homem imaculado que já descobriu o enigma da vida. Aquele que busca o conhecimento não está acima do bem e do mal. Ele apenas compreende que existe dentro de si uma natureza humana e uma natureza de Deus. Torna-se mais responsável do que os outros homens, pois a sua primeira missão íntima é compreender a natureza divina para poder esclarecer a sua natureza de homem. Aquele que recebe a dádiva do conhecimento é apenas um homem que sabe um pouco mais que o seu lado luminoso é o que está esclarecido, e que o lado sombrio é a sua dúvida, e também a sua ignorância dos desígnios de Deus. Aquele que obteve esse esclarecimento na mente e no coração, ainda que tenha muitas virtudes, sente uma grande vergonha pelo pequeno “pecado” que comete, e tenta se corrigir. Ele sabe que está incomensuravelmente distante da perfeição, mas sabe também que está dando mais um passo em sua busca da espiritualidade transcendental.

Quando falo em homem refiro-me à humanidade, representada pelos elementos masculinos e femininos: o Homem e a Mulher, que possuem valores idênticos e que se complementam.


Lembranças de História

Eu creio que é necessário perder a ingenuidade. Não podemos fechar os olhos para as múltiplas formas de conhecimento. Natureza, homens e livros podem nos transmitir o saber. Há sabedoria em muitas fontes. Cabe a nós buscá-la e descobri-la sob o véu das ramagens.


A Religião precisa de unir-se à Ciência e, da mesma maneira, a Ciência precisa dar as mãos à Religião, sendo a Filosofia a mediadora de ambas. Só assim o dogmatismo imperioso e o materialismo vazio podem ser extintos para que todos os homens cresçam em uma mesma fé consciente. É preciso intuir e também pensar. A fé cega é uma lástima. Quase sempre ela gera o fanatismo religioso, que é perigosíssimo. A História nos alerta para esse desequilíbrio. A sede de poder de alguns, aliada à ignorância das massas, já condenou à morte muitas pessoas inocentes e também homens santos e espiritualistas bem-intencionados.


Sentimo-nos um pouco assustados quando lemos e meditamos sobre as crônicas do Velho Testamento: guerra, violência e mais guerras em nome da grandeza de Deus. Como compreender isso? Depois, com o objetivo de seguir as boas-novas do Novo Testamento, as Cruzadas e a Inquisição exterminaram multidões em nome das palavras santas de Jesus. Como compreender isso? Os jesuítas batizaram os índios com água e fogo. Não posso ter entendimento sobre isso. E o mais triste: recentemente, na Irlanda, católicos e protestantes, irmãos nascidos de um mesmo Evangelho, disputando “de espada na mão” quem pode estar com a única verdade, matando-se uns aos outros, e esquecendo-se do profeta filósofo da Galiléia, que sempre pregava o perdão.

Nos tempos atuais, acompanhamos pelos noticiários as conseqüências da fé cega: pregadores enlouquecidos levando ao suicídio centenas e centenas de seguidores. Essas pessoas crédulas não viviam em aldeias dos confins do Paquistão; eram cidadãos do primeiro mundo: da Europa e dos Estados Unidos, viviam na Civilização “adiantada”, tinham olhos para ver e não viam. Sim, é muito necessário o conhecimento. Sem ele não há discernimento.

No decorrer da História, desde os sumérios até os dias atuais, o jogo do poder reveste-se de coroas e túnicas sacerdotais, e as massas são meros peões no tabuleiro de pequenos grupos dominantes.


Por outro lado, como poderíamos nos esquecer de tantos intelectuais e cientistas, alguns friamente assassinados; outros, humilhados vergonhosamente, apenas porque mostraram de outro ângulo as verdades dos profetas? Um deles, o físico Galileu Galilei foi obrigado a dizer que estava mais ou menos louco quando proclamou que a Terra não estava parada, que sim sim, em verdade ela se movia. Se ele não fosse amigo do papa, e mesmo assim, se não voltasse atrás e negasse o próprio enunciado científico, seria morto, com certeza. Até há pouco tempo o seu processo inquisitório estava pendente, esperando solução. Já o filósofo Giordano Bruno foi mais infeliz: foi mesmo jogado na fogueira. E só não cozinharam o astrônomo Copérnico porque ele havia morrido um pouco antes da publicação de seu tratado, no qual falava do movimento duplo dos planetas, que eles giram sim em torno do sol e que a terra é apenas um pequenino corpo no Universo. É fato, é história, é evidência.

Ora, essas foram agrúrias da Idade Média, hoje as coisas mudaram – muitos dirão. Mudaram sim, mas somente nas aparências, pois, ainda hoje, às portas de um novo milênio, a falta de discernimento e o fanatismo continuam, e muita gente gostaria de jogar na fogueira os livre-pensadores, incluindo entre eles, por incrível que pareça, aqueles que pregam o ecumenismo. Mas, como não é permitido nos dias de hoje sair por aí acendendo fogueiras com esse mau intuito, então, os inquisidores de tantas e diversas crenças humilham, ridicularizam e apontam com o dedo: oh, aquele ali não pensa como nós. Ironia à parte, eu confesso: tenho medo dessas distinções.


Muitos Caminhos e Muitas Verdades


Nenhum homem ou mulher, em juízo perfeito, pode aclamar-se dono de uma única verdade, já que muitos são os caminhos e inúmeras são as portas. Lembro-me de Jesus que disse: “Na Casa de meu Pai existem muitas moradas.” Todas as doutrinas que pregam a existência da alma e indicam como caminhos o Amor, a Justiça e a Caridade já estão de posse de verdades divinas. Toda doutrina possui a sua lei, e quase sempre ela é ministrada de maneira inflexível. Mas a lei está escrita na pedra. A pedra não é viva. Vivo é o coração do homem, que amplia o significado da lei conforme a evolução de seu espírito. Penso que, demorando ou não, o santo, o sacerdote, o intelectual, o homem comum porém virtuoso, e até mesmo o pária, o homem violento e o assassino, todos chegaremos a um mesmo lugar, ou seja, a um estágio espiritual semelhante. É só uma questão de tempo e de esclarecimento para todos chegarmos lá. Porque, no fundo, todos buscamos o mesmo Deus, apenas compreendido de maneiras diferentes. Então, por que todos nós, irmãos neste planeta de expiações e de crescimento espiritual, não podemos ser condescendentes uns com os outros, darmos as mãos e juntos tentarmos compreender as infinitas faces de Deus?

O autor desta reflexão só almeja a paz, não tem a pretensão de ser mestre de quem quer que seja, e muito menos profeta, se bem que não é muito difícil antever os acontecimentos nestes loucos e tumultuados tempos modernos. Não, longe disso. Antes ele prefere continuar na esperança de um dia ver todas as gentes, não em grupinhos, e sim como uma única irmandade no planeta, ajudando-se uns aos outros, com os olhos em direção ao Pai Celestial e com os lábios próximos ao coração da Mãe-Terra. Enquanto isso não acontece, a tão esperada confraternização, posso também, com o coração sincero e com a consciência límpida como o dia, fazer a minha oração fraterna:

Viva o Anjo Jesus, que foi humilde pela via cruci, como um cordeiro que se leva para o sacrifício! Dou vivas aos cristãos primitivos, puros no misticismo crístico: Viva o pescador Simão Pedro, a rocha angular; viva João, o teólogo e também Paulo de Tarso, o doutrinador ! E viva Francisco de Assis, o santo mais puro, que amou homens, pássaros e feras! E que vivam em paz, por eles, todos os cristãos de hoje: católicos, protestantes, ortodoxos e evangélicos, e mais ainda aqueles que enxergam, que amam e perdoam! Viva também Moisés que libertou, legislou e conduziu um grandioso povo sem pátria! Viva Salomão, o sábio que pediu mais sabedoria! Viva o legislador Rama, viva Krisna e toda a vastidão dos Vedas e do Hinduísmo! Viva Buda, o Anjo filósofo que também pregou Bondade, ampliando o Amor não só aos humanos mas a todos os seres vivos ! Que vivam as doutrinas filosóficas da China colhidas do sublime I-Ching e das palavras de Lao-tsé e Confúcio! Viva Maomé e vivam aqueles que compreendem o verdadeiro objetivo do Corão! Viva Kardec que compilou e viva Leon Denis que divulgou a doutrina consoladora! Que vivam os crentes lúcidos, as testemunhas de Jeová e todas as seitas independentes que desejam melhorar o homem! Viva a santa madre Teresa de Calcutá, que nos dias atuais é o símbolo máximo do altruísmo e amor pelos irmãos! Que vivam em plena Luz todas mulheres e homens de boa vontade! E que continuem vivendo também para os estudiosos a riqueza esotérica deixada pelo Egito, Grécia e Pérsia Antiga através das palavras de Hermes, Akhenaton, Orfeu, Pitágoras, Sócrates, Platão e Zaratrusta! Pois existe água viva em muitas fontes. Precisamos é apurar o paladar e abrir bastante os olhos e os ouvidos.


E livrai-nos, ó Deus de todas as raças, ó Deus de todas as crenças, livrai-nos do fanatismo!


Toda luz
é obra do Pai Eterno.
A ignorância do homem
é a sombra dessa luz.




(Publicado em 1995, inicialmente no Imprensa Livre de Muzambinho; depois no Avatar de Cuiabá e na Folha de Campinas, etc.)

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Johann Wolfgang von Goethe: 3 Canções


Canção de Mignon

Conheces a região do laranjal florido?
Ardem, na escura fronde, em brasa os pomos de ouro;
No céu azul perpassa a brisa num gemido...
A murta nem se move e nem palpita o louro...
Não a conheces tu? Pois lá... bem longe, além,
Quisera ir-me contigo, ó meu querido bem!

A casa, sabes tu? em luzes brilha toda,
E a sala e o quarto. O teto em colunas descansa.
Olham, como a dizer-me, as estátuas em roda:
- Que fizeram de ti, ó mísera criança!
Não a conheces tu? Pois lá... bem longe, além,
Quisera ir-me contigo, ó meu senhor, meu bem!

Conheces a montanha ao longe enevoada?
A alimária procura entre névoas a estrada...
Lá, a caverna escura onde o dragão habita,
E a rocha donde a prumo a água se precipita...
Não a conheces tu? Pois lá... bem longe, além,
Vamos, ó tu, meu pai e meu senhor, meu bem!

O Reencontro

ELE:
Por que estás hoje esquiva, ó minha doce amiga?
Concede um beijo a mais a estes lábios famintos...
A árvore hoje, como ontem, tem os ramos retintos
de flores que alimenta, sustém, renova e abriga.
Comparavas meu beijo às abelhas inquietas
que buscam sem cessar a flor dos seus amores,
sussurrando, a zumbir, nas moitas prediletas
o seu canto de gozo, hino ao perfume e às cores...
Ébrio de azul, de luz, perfume que bebeu,
o enxame sem descanso a faina continua...
Não há flores no chão, nenhuma planta nua...
Será que a Primavera só para nós morreu?

ELA:
Aperta-me ao teu peito! Ontem nos separamos!
E a saudade é mais suave do que todo desejo.
Sonha, querido amigo! A lembrança de um beijo
é mais doce que todos os beijos que trocamos...
A noite sem piedade veio nos separar.
Foi tão triste, à tardinha, o nosso adeus de ontem!
Que as Primaveras sempre para nós dois repontem
nas árvores, nas flores, nos frutos do pomar...

Anelo

Só aos sábios o revele,
Pois o vulgo zomba logo:
Quero louvar o vivente
Que aspira à morte no fogo.

Na noite – em que te geraram,
Em que geraste – sentiste,
Se calma a luz que alumiava,
Um desconforto bem triste.

Não sofres ficar nas trevas
Onde a sombra se condensa.
E te fascina o desejo
De comunhão mais intensa.

Não te detêm as distâncias,
Ó mariposa! e nas tardes,
Ávida de luz e chama,
Voas para a luz em que ardes.

"Morre e transmuda-te": enquanto
Não cumpres esse destino,
És sobre a terra sombria
Qual sombrio peregrino.


Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832)


Tradução de
João Ribeiro (1) Roquette Pinto (2) Manuel Bandeira (3)

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Handel: Dettingen Te Deum & Anthem, com o Coro da Abadia de Westminster, dirigido por Simon Preston



HANDEL mudou-se definitivamente para Londres em 1717, quando assumiu o lugar de um dos maiores compositores nascidos na Inglaterra, Henry Purcell, que morrera cedo, em 1695, com apenas 36 anos. A partir de então, Handel, com sua poderosa e versátil inspiração, deu continuidade à obra de Purcell.

Além das odes comemorativas típicas da música britânica, revitalizou a música coral através de mais de 40 oratórios sacros e seculares, hoje famosíssimos. O músico alemão também contribuiu muito para a liturgia anglicana, compondo inúmeros anthems, que estruturou como cantatas, dentre os quais destacam-se os Chandos Anthems. E mais 5 Te Deum. O último deles, Dettingen Te Deum, é obra-prima absoluta.

Esta peça solene surgiu em 1743 para celebrar a vitória da Inglaterra e seus aliados contra o exército francês, que ocorrera em Dettingen, na Bavaria, sob o comando do rei George II e de lorde Stair. O grande hino composto por Handel foi encomendado para a festividade de agradecimento pela batalha ganha. Para a ocasião também foi apresentado outro hino, de proporções menores, mas não menos belo: o Dettingen Anthem. Dettingen Te Deum é uma das mais belas obras de Handel. Hoje é pouco lembrada pelo seu motivo original e sua relação com a história marcial britânica. Outrossim, essa imponente e vasta cantata, com árias e predominância do coro polifônico, foi adotada por várias nações como um hino de júbilo, que se celebra após o tormento e as aflições de qualquer guerra, física e espiritual. Semelhante a Ode an die Freude (Ode à Alegria) de Schiller-Beethoven, é um cântico de louvor à paz mundial.

___________

Choir of Westminster Abbey
Christopher Tipping, alto (Te Deum & Anthem)
Harry Christophers, tenor (Te Deum)
Stephen Varcoe, bass (Te Deum)
Michael Pearce, bass (Anthem)

The English Concert
Trevor Pinnock, organ

SIMON PRESTON, director

Download MP3: Baixar

 

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Anotações atrás da Cortina (3)


onde estará Salomé
a dançar os rutilantes véus?
o sorriso branco os cílios azuis
as franjas de ébano
as coxas esguias o ventre arfante
onde estarão?

no palácio ainda ecoam
gemidos e lascívia dos festivos
ainda ecoam no palácio
a sofreguidão de Herodes
e os gritos mudos de João

cadê a súplica dos lábios quentes
da princesa dos desvarios?
que notícias me dão do calabouço
e das câmaras mortuárias?
e onde estará aquele
que engoliu o silêncio na hora sexta
antes da festa dos proscritos?

vive ainda Salomé
no contorno das sombras
no pátio rendado de tarântulas
a fitar os olhos ocos de João
na rútila do vento
no escárnio do riso
os gritos mudos de João

e dança... e dança...





terça-feira, 8 de setembro de 2009

Anotações atrás da Cortina (2)


Quando a luz incide na escuridão,
formas grotescas
revelam-se-nos
reais
e distantes da beleza,
que nos atemorizam
e com as quais temos que lutar
para compreendê-las
e talvez vencê-las.

É a luta com o Anjo,
da qual Jacó saiu ferido,
porém muito mais forte.



Anna Muylaert: Durval Discos



O surpreendente Durval Discos, talvez uma obra-prima do cinema nacional, foi a estréia em longa-metragem da roteirista e diretora Anna Muylaert.

Recebeu, merecidamente, no 30. Festival de Gramado de 2003 os principais prêmios: filme, direção, roteiro, fotografia, direção de arte e trilha sonora. Sem dúvida, uma obra como essa só pode engrandecer o Cinema Brasileiro, que nos últimos anos renasceu com brilho; nem todas as realizações alcançaram resultados positivos, mas várias merecem o elogio da crítica internacional.

Definir Durval Discos simplesmente como 'comédia negra', como alguns fazem, é ato absurdo e inconsequente, porque a obra é muito mais do que isso. Há sim em todo filme insinuações irônicas, há humor sarcástico, mas aos poucos a trama nos conduz a um sombrio labirinto que nos lembra a condição humana, a nossa incapacidade de conduzir o próprio destino. Assim como o disco de vinil, o lado A do filme é apenas a preparação para o que virá depois: o lado B, e este não é motivo de riso, é horror transformando-se em tragédia.


A atuação do elenco é de ótimo nível, com destaque para a atriz Etty Fraser. A fotografia de Jacob Solitrenick e a direção de arte de Ana Mara Abreu complementam-se de maneira admirável. Muito competente é a direção geral de Anna Muylaert, que também assina o roteiro. E este é o ponto alto do filme.

Solidamente estruturados, argumento e roteiro cinematográfico tomam de empréstimo o que há de melhor em literatura. A incessante andança dos personagens pela casa lembra Dostoievski; o desenrolar inusitado da trama remete-nos a Ibsen; mas o clima de ansiedade é kafkeano. Não é surrealismo como muitos interpretam, mas sim realismo fantástico. Os personagens – a velha e a criança – não encaram os acontecimentos como ocorrências oníricas, outrossim, como fatos reais e normais do cotidiano. Somente o dono da discoteca – um homem adulto, vivendo portanto fase intermediária, entre a infância e a velhice – se espanta com o desenrolar dos acontecimentos.

Apenas o desfecho me deixou um pouco insatisfeito. Poderia ser melhor concretizado, de uma maneira mais impactante. Mesmo assim está de acordo com uma das mais impressionantes frases do filme, talvez a chave da desesperança humana: “Agora é só esperar virar pó.”

Durval Discos não é uma obra otimista. Antes de qualquer coisa, é realista e verdadeira, apesar da estrutura e da atmosfera onírica.

(Ailton Rocha, resenha de 12-05-2005 à revista Câmara, Ação! de Campinas)

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Durval Discos
Direção e Roteiro: Anna Muylaer
Elenco: Ary França, Etty Fraser, Marisa Orth, Isabela Guasco, Letícia Sabatella

Produção: Sara Silveira e Maria Ionescu
Fotografia: Jacob Solitrenick
Direção de Arte: Ana Maria Abreu
Trilha Sonora: André Abujamra
Duração: 96 min.
Ano: 2002
País: Brasil

sábado, 29 de agosto de 2009

Esquecimento


não se morre só quando se fecham os olhos
ou cessam de respirar os pulmões

se existem muitas formas de morrer
também morre o coração - aos poucos

na omissão do aceno tão esperado
no cruel silêncio de alguém que amamos

morre-se um pouco a cada dia
pela ausência da palavra que nunca chega

morre-se como galhos que se esgarçam
tentando abraçar os contornos da tarde

morremos - parcelas inexatas – fielmente
no acúmulo do carinho mendigado

um dia emudece a essência da alma
extingue-se a esperança, antes tão farta

e do amor sobra apenas uma ponte retorcida
em cujas tábuas soltas o abismo vence


quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Fernando Pessoa: Prece


Senhor, que és o céu e a terra, que és a vida e a morte! O sol és tu e a lua és tu e o vento és tu! Tu és os nossos corpos e as nossas almas e o nosso amor és tu também. Onde nada está tu habitas e onde tudo está - (o teu templo) - eis o teu corpo.

Dá-me alma para te servir e alma para te amar. Dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra, ouvidos para te ouvir no vento e no mar, e mãos para trabalhar em teu nome.

Torna-me puro como a água e alto como o céu. Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos. Faze com que eu saiba amar os outros como irmãos e servir-te como a um pai.

[...]

Minha vida seja digna da tua presença. Meu corpo seja digno da terra, tua cama. Minha alma possa aparecer diante de ti como um filho que volta ao lar.

Torna-me grande como o Sol, para que eu te possa adorar em mim; e torna-me puro como a lua, para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te possa ver sempre em mim e rezar-te e adorar-te.

Senhor, protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim.


(Em Obras em Prosa: O Eu Profundo, Ed. Nova Aguilar)

Fernando Pessoa (1888-1935)

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Este curto texto do grande poeta português Fernando Pessoa encontra-se espalhado pela Net. Repeti-lo aqui não seria necessário, mas o faço por admiração e tributo. A Prece é muito apreciada por leigos e especialistas, com razão, pois o conteúdo sincero e vasto que há nela vai muito além de credos pessoais ou de confrarias. Penso mesmo que deveria ser reconhecida como um elo entre as religiões para promover o verdadeiro Ecumenismo.

Teóricos da literatura, psicólogos, parapsicólogos, místicos e esotéricos, todos tentam explicar o fenômeno dos heteronômios em Fernando Pessoa. No entanto, esquecem que o próprio poeta escreveu longamente sobre o assunto, atribuindo vida própria aos inúmeros autores que co-escreveram a sua obra; segundo ele, não eram personagens mas sim entidades, tanto que discordava veemente de alguns, muito mais de Alberto Caieiro, como podemos notar nesse trecho de carta:

“(...) escrevi com sobressalto e repugnância o poema oitavo do ‘Guardador de Rebanhos’, com a sua blasfêmia infantil e o seu antiespiritualismo absoluto. Na minha pessoa própria, e aparentemente real, com que vivo social e objetivamente, nem uso da blasfêmia, nem sou antiespiritualista. Alberto Caieiro, porém, como eu o concebi, é assim: assim tem pois ele que escrever, quer eu queira, quer não, quer eu pense como ele ou não. (...)”Não é ilógico crer que os diversos autores que participaram da obra de Fernando Pessoa eram "pessoas" distintas. Apesar da discordância dos céticos, este é um caso nítido de mediunidade, da qual o poeta tinha consciência e, apoiado em sua erudição, explicava.

Pessoa era um esotérico, um iniciado que conhecia com profundidade as chaves secretas de várias fraternidades. Tinha na previsão da Astrologia, entre outras, uma espécie de condutora para os seus passos, associada à lucidez da lógica filosófica. Basta dizer que despertou o interesse de Aleister Crowley, o maior bruxo do século XX. Vários encontros ocorreram entre os dois.

Mas não tenho dúvida, diante da comparação dos estilos, que a Prece acima transcrita pertença a Fernando Pessoa, ele mesmo.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Cícero Acaiaba: Fronteira do Reino


Refração

Há uma fronteira que não se deve transpor
fica entre a névoa e o reinado de aquário
sua porta é espelho convexo
quem olha pra trás vira estátua de pedra
quem olha pra frente
seu lúdico reflexo.
Os que ousaram espreitar as mãos
entre as frinchas fluidas
e tatearam o palpitante ossário
decifram o silêncio
dos suicidas.
Há uma fronteira
que divide o homem em partes iguais:
depois do primeiro passo
não poderá retroceder jamais.

Jardim Inefável

No muro, um simples traço. É só tocá-lo
e o jardim submerge por encanto.
Noite densa de luzes afogadas,
profundamente abismo em que se esconde

no próprio enigma. Do lado esquerdo,
um rio de asas trêmulas, fugindo
imóvel. À direita, estátuas olham

para o silêncio, onde germina o tempo.
E nada existe além do grande medo,
nem sequer a lembrança de uma estrela
boiando as sombras do jardim perdido.

O muro cada vez fica mais longe,
até que resta apenas o sussurro
das nuvens de outro céu amanhecendo.

Música Invisível

No fundo da alameda a água que lembra:
reflexos tão velhos esgarçados
e um pássaro no vôo interrompido.

A tarde sopra névoas de silêncio,
e tudo fica imóvel no jardim.
Apenas uma estátua quase morta
sorri, pra naufragar depois no sonho.

A sombra escorre calma na alameda,
subitamente o vento passa, o instante
das pétalas e folhas desfiarem
a surdina do eterno encantamento.

Mas os grilos, por mágica da noite,
começam a quebrar em sons de prata
o invisível espelho dessa música.

O Mito

Andei por tanto tempo à procura do mito,
entre escuros caminhos, e veredas frias.
Da frágil relva ao sólido granito
varando noites, viajando dias,

busquei a essência misteriosa do infinito.
Porém, por todo o reino, as órbitas vazias
das clareiras calavam como um grito,
cujo eco perdeu-se em longes serranias.

Exausto, dominando a custo meu cansaço,
estrelas a orvalharem todo o espaço,
achei o sono em doce alfombra.

E em sonho eu vi então, nitidamente,
o mito me fitando frente a frente
com seu rosto de sombra.

Espelho

O espelho sorve aos poucos outra imagem,
e deixa a sombra cega no seu ermo
de trastes cismativos, de roupagem
enrugada e poeira fria. O termo

da planície é o enigma da miragem:
olhos de estátua sob um sono enfermo,
e mãos caladas lendo a tatuagem
na areia da alma onde há fluir de aragem.

Espelho a dentro mil lembranças agem,
vozes esgueiram calmas, de repente
cabelos naufragando à luz inquieta.

O trêmulo reflexo da celagem
fere por fim interminavelmente
o coração numa invisível seta.

A Semente da Noite

Da semente da noite nasce o sono:
flor de lótus perfuma com silêncio
os olhos que morreram sem amor
e se orvalharam de névoa e escuridão.

Tristes esperam, juntos e sozinhos,
a luz da madrugada há um milênio,
e ouvem girar o mundo em derredor,
imóveis, esquecidos sob o chão.

Até o último gesto, apelo inútil,
talvez saudoso estigma de adeus,
secou nos ossos da vazia mão.

O tempo inexorável já transforma,
- e para sempre, asperamente fria –
em pedra o que antes era coração.

Solidão/Limite

Aqui é o teu limite: não prossigas.
Baste à tua volúpia o sonho raro
de tecer a distância. Ou a infância
aprisionar em castelos de areia.

A fronteira se perde em vago oceano,
e os veleiros de um mundo singram veias
de ácido e lodo. Fica no teu reino,
aqui é teu momento de repouso.

Não mais o medo desta solidão,
nem silvos de vinganças rastejantes:
talvez a morte de nascer apenas.

Ultrapassar a linha deste mapa
é o mesmo que gritar na pedra sem
que te responda o eco de ninguém.


(poemas e sonetos selecionados de
"Fronteira do Reino", 1988, Ed. João Scortecci)


Cícero Acaiaba (1925-2009)


quarta-feira, 29 de julho de 2009

Villa-Lobos: Choros No.6 por Roberto Tibiriçá




Este CD é maravilhoso! O que encanta e impressiona aqui é a excelência de Roberto Tibiriçá regendo o Choros No.6 de Villa-Lobos. Encarnou de tal forma o espírito do criador da obra que duvido existir outra interpretação que a supere. Toda vez que a ouço não consigo conter o entusiasmo e grito: Bravo!!!! Grande Villa-Lobos! Grande Roberto Tibiriçá e músicos da Orquestra Sinfônica Petrobras Pró Música! Sem qualquer dúvida, deram mais vida a essa obra-prima pertencente aos Choros, a mais importante série do maior compositor brasileiro.

O Trenzinho do Caipira, como todos sabem, faz parte da belíssima suíte 'Bachianas Brasileiras No.2'. Escrita em 1930, a peça com o título principal de 'Toccata' é uma pitoresca viagem pelas cidades do interior paulista sobre as rodas sacolejantes de uma maria-fumaça. Em seus tempos de Paris, Villa-Lobos ouviu a fantasia orquestral Pacific 231 de Arthur Honegger, e transpôs a ruidosa locomotiva de lá para as paisagens rurais daqui. Sem exagero nacionalista, a orquestração do Villa no Trenzinho do Caipira ficou muito mais bela e criativa e, pela comovente melodia, mostra muito mais calor humano.

O Choros No.6, que a antecede em quatro anos, é também um percurso de trem, mas desta vez pelo Rio de Janeiro, estado natal de Villa-Lobos. A viagem inicia na cidade do Rio com a festa do Carnaval; depois continua pelas pacatas cidades interioranas, relembrando valsas e modinhas de seresteiros em coretos e praças, costumes já nostálgicos; há também a evocação da natureza, sugere os rios e a vegetação da mata atlântica. O percurso termina da maneira como iniciou: na apoteose carnavalesca da avenida carioca. Trata-se de uma peça repleta de cores e ritmos, que nos deslumbra: é som, sabor e cheiro de um Brasil legítimo, cuja diversidade de paisagens e riqueza musical é motivo de orgulho. O fato da gravação ser ao vivo consegue mais ênfase a esse arrebatamento.

Já o Concerto para Piano e Orquestra em Formas Brasileiras, de Hekel Tavares, apesar de belo e rico em melodias folclóricas, não é uma peça tão sensacional quanto as de Villa-Lobos. Não há como camuflar essa constatação, o que não significa falta de qualidade da obra. É um concerto encantador, ainda mais sendo Arnaldo Cohen o pianista.

Os apreciadores da boa música precisam conhecer mais os nossos mestres clássicos, os antigos e os modernos. São muitos, mas cito alguns dos maiores, que criaram obras do mesmo nível dos grandes compositores europeus: Pe. José Maurício, Carlos Gomes, Henrique Oswald, Alberto Nepomuceno, Heitor Villa-Lobos, Francisco Mignone, Lorenzo Fernández, Camargo Guarnieri, César Guerra-Peixe e Cláudio Santoro.

Quem se sentir atraído por essa viagem, e resolver se aprofundar nas obras desses mestres, não se arrependerá.

Aqui, o belo CD com as obras de Villa-Lobos e Hekel Tavares, presente do maestro Tibiriçá a este blog e a todos que apreciam música de qualidade. 

Download MP3 320 kbps:
VillaLobos.HTavares.Tibirica.Cohen.zip