segunda-feira, 30 de março de 2009

Ode de Manifesto


Um grande e vasto VIVA !!!!!

às DIFERENÇAS

de bandeiras, de hinos, de crenças
e de caminhos
que ainda existem por este mundo.

Que exista a literatura tendenciosa, fácil e medíocre!
Que existam as poltrancas e as lambanças,
os tchans e os banzés de pandeiro!
os darks ensimesmados, os punks esverdeados!
as madonas fetichistas!
os masturbadores da arte e do erotismo barato!
Que existam a mixórdia das rádios e tvs -
cãezinhos de coleira do lixo americano!
Que existam os sertanejos chorões
que traíram a pureza das violas e raízes!
Que existam os frequentadores de leões e estúpidos ratinhos!
ou os macacos de auditório
gu-gu-lejantes
de banheiras risíveis!
das estapafúrdias casas de ocos artistas!
de brothers mentecaptos!
Que existam os divulgadores sem escrúpulos
que obrigam o povo a consumir bagulhos!
Que existam também os burgueses endinheirados
consumidores de merda!

Que existam os adoradores de jornalecos sangrentos!
os canibalistas de bola e gramados!
Que existam essas filantropias domingueiras
de direitos humanos
que protegem assassinos nos calabouços
e negam o pão ao pai desempregado!
Que exista a comunidade de branco,
Médicos-Bulldogs que perseguem fumantes
porque impotentes diante das cocaínas!

Que exista essa sociedade que incentiva
crianças autoritárias,
adolescentes carrascos,
anciães metamorfoseados em ridículos mocinhos!
Que existam os capitalistas enforcados
em suas gravatas com seus peitos estufados
com a alma vendida por uns míseros níqueis!
Que existam então os aplausos
às pantomimas politiqueiras!

Clap clap clap clap clap a todos eles!!!!!
Tudo e todos merecem existir
se assim o querem.

Mas nós, que gostamos das belezas elaboradas,
que gostamos dos livros
e do enlevamento espiritual-estético,
do cheiro das páginas,
do silêncio das bibliotecas,
das sínteses alexandrinas,
das metáforas, dos cristais da palavra,
dos hemisférios aristotélicos,
dos meridianos taoístas,
das cúpulas florentinas,
das góticas catedrais,
da arquitetura musical,
da compenetração em sinfonias,
das passacaglias, fugas e cânones...
sim ! nós também merecemos existir.

Temos esse direito
e desse direito queremos fazer uso.


sábado, 28 de março de 2009

Simpósio Internacional de Letras em Caxambu: 22 a 25 de abril de 2009


Bruno Maia, que faz mestrado em letras na UninCor de Caxambu, me encaminhou a notícia desse interessante simpósio, cujo frontispício já indica o alto nível do encontro. A UNINCOR -Universidade do Vale do Rio Verde, é patrocinadora do evento.

“Porque, agora, Fronteiras do contemporâneo: linguagem, espaço e máquina? Porque foram as questões que insistiram no simpósio de abril de 2008. Essas questões se impuseram como as questões que as novas práticas exigem uma versão mais radical da interdisciplinaridade. As confrontações entre paradigmas geram e inventam lugares vazios, e essa quer ser a invenção do nosso próximo 5o. SINAL – Simpósio Internacional de Letras.”

Divulgando aos interessados, eis o link com os detalhes:

sexta-feira, 27 de março de 2009

Sobre Amizade e Solidariedade


“Um amigo fiel é um poderoso refúgio,
quem o descobriu descobriu um tesouro.”
Eclesiástico 6, 14


As pessoas estão desatentas.

Elas somente entendem amor e riso nos momentos circunstanciais da alegria. Esbanjam afagos na festa da amizade na época em que sobram água, manjares e sombras. Fartam-se sob a égide da cornucópia, mas no tempo das duras penas elas deixam os amigos para trás, perdidos na tempestade.

As pessoas estão muito desatentas.

Só compreendem a essência da vida depois que passam os vendavais, quando se assentam os aluviões de poeira. Elas olham para trás, com tristeza, e lamentam as paisagens em destroços; só assim se lembram daqueles que ficaram esquecidos com as mãos estendidas no torrencial de areia.

As pessoas só compreendem o pouco caso que deram aos oásis humanos quando chega o tempo dos domingos murchos, em que a vaidade é um jardim vazio, em que as aparências mostram-se inúteis, época em que as paixões chegam ao fim. Então, algumas pessoas revivem rostos amados e insinuam um sorriso tardio de compreensão.

Lamentavelmente, a maioria das pessoas só compreende a essência da vida na chegada do outono, quando aparecem as rugas. Para essas pessoas, já, há muito tempo, desabrocharam as flores. E essas também emurcheceram. Só lhes restam agora iniciar a colheita dos últimos frutos, se, por ventura, eles existirem.

São muitas as pessoas que passam pela vida. Passam, passam. E no final erguem a cabeça e notam de muitas maneiras que desatentas passaram. As oportunidades, extintas quase todas; as chances de exercer a solidariedade, mal aproveitadas, esvaídas na inércia.

Fiquemos sempre atentos ao provérbio: “Como é fácil ser amigo de um amigo em suas horas de plenitude!”

Externo aqui a minha admiração aos que despertam, ainda que tardiamente, e tentam recuperar uma mínima parcela do tempo perdido, buscando compreender a dor alheia nas mesmas proporções que, um dia, partilharam da alegria e das festas no coração iluminado do amigo.

Todos sabemos que um amigo sincero e bom é como um anjo em nossa vida. Como são aconchegantes as asas que abraçam e a voz melíflua que aconselha! Ora, conviver com sorrisos e afagos nada custa. Beber no cálice da alegria em tempos sem tormenta é o que de mais fácil há no transcurso da existência. Mas eis que toma de assalto o amigo a chaga do infortúnio. Esta é a hora da prova da verdadeira afeição, pois o que seria de nós se virássemos as costas a quem abraçávamos, certa vez, na regalia da festança, e com quem fomos, incondicionalmente, felizes?

Fora bom receber, mas, agora, como é angustiante amparar o anjo caído! Pois quando um amigo cai, sentimos que o nosso ponto de apoio também se modifica, a segurança se abala. No entanto, é justamente nessas horas que o apoio deve se cumprir fundamental, momento em que o abraço de receptividade pode amparar o corpo que cai, direcionando nesse abraço todas as forças, centrípetamente, para um único ponto central que pode ser o coração do amigo que sofre.

Não meçam esforços para ajudar o amigo que sofre, desde que este lhe peça o conforto, ainda que insinuado, porque auxiliar os que abaixam a cabeça e insistem em se despedir da vida é ato infrutífero, é como escrever sobre águas ou pretender atar as beiradas do vento. Quando essa atitude se faz concreta, então orem por ele em suas horas de meditação. Respeitem o silêncio do amigo e o aguardem de braços abertos para quando ele estiver pronto e solicitar o seu amparo.

Enfim, velai por todos! Nos episódios tortuosos da vida, estendam as mãos para aqueles que, em algum momento, foram os seus companheiros de alegria, pois é bem mais verdadeiro o sabor do riso compartilhado após os tormentos do que a volubilidade das taças que tinem no vazio dos motivos. As duradouras amizades são aquelas iniciadas no riso, temperadas na mútua compreensão da dor e depois consubstanciadas no sorriso do agradecimento. Eis a amizade sólida, a alegria que dura e que ultrapassa os obstáculos do tempo.

É sempre bom darmos graças àqueles que despertaram e conseguiram capturar a mínima parcela das horas perdidas. E por aqueles que terminam a vida da mesma forma como começaram: em profunda sonolência, oremos por eles. Não puderam aprender com a doação da amizade em solidariedade. Oremos para que despertem da letargia !


(em "Sobre a Cinza e o Fogo: Pequenas Reflexões")



sexta-feira, 20 de março de 2009

Rabindranath Tagore: 3 Poemas



Em 1913, o poeta indiano Rabindranath Tagore recebeu merecidamente o prêmio Nobel, o primeiro asiático a recebê-lo. Como poeta e escritor criou em quase todos os gêneros, além de ser também compositor e pintor. E foi homem sábio, coerente com suas crenças, tanto que recusou em protesto político o título de Sir que lhe oferecera a Coroa Britânica. O seu lirismo é belo, muito belo, como podemos ler nos três pequenos poemas que seguem. São poesias bastante conhecidas e citadas, mas é sempre bom relembrá-las. Curiosamente, a doçura e a melancolia de Tagore possuem muita semelhança com os grandes poetas chineses da Dinastia T’ang: Li Po e Tu Fu.

Flor-de-Lótus

No dia em que a flor de lótus desabrochou
A minha mente vagava, e eu não a percebi.
Minha cesta estava vazia e a flor ficou esquecida.
Somente agora e novamente, uma tristeza caiu sobre mim.
Acordei do meu sonho sentindo o doce rastro
De um perfume no vento sul.
Essa vaga doçura fez o meu coração doer de saudade.
Pareceu-me ser o sopro ardente no verão, 
procurando completar-se.
Eu não sabia então que a flor estava tão perto de mim
Que ela era minha, e que essa perfeita doçura
Tinha desabrochado no fundo do meu coração.

Se Não Falas

Se não falas, vou encher o meu coração
Com o teu silêncio, e agüentá-lo.
Ficarei quieto, esperando, como a noite
Em sua vigília estrelada,
Com a cabeça pacientemente inclinada.

A manhã certamente virá,
A escuridão se dissipará, e a tua voz
Se derramará em torrentes douradas por todo o céu.

Então as tuas palavras voarão
Em canções de cada ninho dos meus pássaros,
E as tuas melodias brotarão
Em flores por todos os recantos da minha floresta.

De “Gitanjali”

Deixa a cantilena, o cântico
e a recitação de contas de rosário!
A quem veneras neste recanto
solitário e escuro de um templo de portas fechadas?
Abre teus olhos e vê
que teu Deus não está diante de ti!
Ele está onde o agricultor está lavrando o chão duro
e onde o pedreiro está rachando pedras.
Ele está com eles no sol e na chuva,
e sua roupa está coberta de poeira.
Remove teu manto sagrado
e como Ele desce para o chão empoeirado!
Libertação? Onde se encontra essa libertação?
Nosso mestre assumiu pessoalmente com alegria
os vínculos da criação;
Ele está vinculado a nós para sempre.
Sai de tuas meditações
e deixa de lado tuas flores e o incenso!
Que mal há se tuas roupas ficam gastas e manchadas?
Encontra-o e fica com Ele na faina e no suor de tua face.


Rabindranath Tagore (1861-1941) 


Mandala Flor-de-Lotus
Direitos: Petramística. Desenho de Renata França

terça-feira, 17 de março de 2009

Uma Viagem pelo Teu Corpo



Se queres conhecer os mistérios de teu físico,
peço-te que abras a geografia de teus poros.

Apalpa cada vertente, cada margem,
cada pequeno rio de teu corpo.
Percorre as tuas pernas, os joelhos,
o movimento circular de tuas coxas.
Pressione a nuca para sentires o delicioso frio
das vontades que querem se libertar.
Toca os mamilos, circunda os seios,
para que sintas como te latejam os sentidos.
Desliza-te por toda pele. Podes sentir?
Ouve tua respiração percorrer todo o ventre,
vive a pulsação de tua planície onde se abre o sol,
apalpa a região onde se iniciam os negros pêlos,
o arbusto que guarda a vida,
a caverna onde queima o desejo.

Toca cada pêlo, percebe o arrepio,
descobrindo cada vegetação, cada broto,
cada ramo de teu vale do prazer.
Com o tato mais sereno
abre os teus lábios internos, comprime-os,
suaviza-os com os ramos de teus dedos.
Busca em tua gruta mais funda
a passagem que liberta a ti mesma.
Conhece-te o corpo para libertar a mente.

Através dos caminhos
que teus próprios dedos abrem
podes pressentir o borbulhar de teu orgasmo?
perceber o arroio que medra lavando-te
de todas as culpas imaginárias?
como alguém que se conquista,
que se compreende pela vez primeira,
como alguém que se vê virgem
por paisagens nunca antes vislumbradas?

Experimenta o palpitar de cada célula que renasce.
Abre-te como rosa em pétalas
e perfuma as tuas terras e o teu mundo
com os olhos em vôo no azul do céu.
Assim, te descobrirás, plenamente mulher.

E quando encontrares o homem que te mereça,
que complete tua alma em amizade e amor,
em paciência e compreensão, abre-te a ele,
entrega a este homem o teu sorriso,
tuas romãs, teus sândalos e almíscares,
abre teus véus e as tuas riquezas desvendadas.


sábado, 14 de março de 2009

Buddha e o Sofrimento Humano



Não adianta ignorar o sofrimento e virar a face para não ver as coisas tristes do mundo. Ora, elas existem!

Essas palavras fazem-me lembrar de uma história ocorrida há seis séculos antes de Cristo, em Lumbine, sul do Nepal. É a história de Siddharta Gautama, o príncipe hindu, nascido e criado em um palácio repleto de esplendores. O seu pai era um rajá e quis criá-lo distante da tristeza e da dor, mostrando-lhe apenas coisas belas, para que o filho não tomasse ciência das misérias do mundo. Assim, ele cresceria sempre feliz, pensava o pai. Quando Siddharta completou dezoito anos, ele sentiu uma grande curiosidade de conhecer o misterioso mundo além dos muros do palácio. O pai, muito preocupado com o que o filho poderia ver, preparou a cidade, organizando uma bela festa. Tomou o máximo de cuidado para que ficassem escondidas a pobreza e a miséria e, assim, a recepção ao príncipe mostrou-se em cenas repletas de alegria, como se a dor e a tristeza pudessem ser ocultas para sempre. Siddharta desconfiou de tudo aquilo. Passado algum tempo, ele teve uma idéia: disfarçou-se de homem comum e saiu com Chana, seu cocheiro. Então, caminhando pelas ruas da cidade, viu um velho com a pele amarela enrugada, depois viu um homem doente e um outro mendigando o pão e, por fim, presenciou um enterro em que o povo carregava um corpo apagado e inerte. A partir desse dia começou a questionar sobre o enigma da existência: Por que os homens sofrem? E não houve meio, teve que seguir o seu destino. Aos vinte e nove anos, deixou a esposa e o filho, ainda bebê, e foi em busca da resposta, compreendendo que existiam mais coisas além de seus palácios e de seus belos jardins. Viveu durante seis anos como um eremita, tendo vida de asceta e vivendo de esmolas. Mas não encontrou a iluminação através da completa renúncia aos bens materiais. Ele estava tornando-se apenas mais um mendigo, igual a tantos no mundo. Entretanto, continuou a perquirição. Siddharta ainda fez uma última tentativa. Sentou-se debaixo de uma figueira em uma aldeia do norte da Índia. Lá ficou durante 40 dias e 40 noites, sem comer, beber ou dormir, na convicção de que não se ergueria dali até compreender o mistério do sofrimento e uma maneira de amenizá-lo. E ele só se ergueu mesmo quando obteve a resposta. A partir de então, o príncipe Siddharta passou a ser conhecido como o Buddha, que em sânscrito significa ‘Iluminado’.

Embaixo da figueira sagrada, chamada ‘Bo’, Buddha havia meditado muito. Descobriu uma grande verdade e passou a ensiná-la aos primeiros discípulos: “O caminho além da tristeza e do sofrimento é o caminho do meio, entre a austeridade e a sensualidade.”

Buddha era um espiritualista inteligente. Ele chegou à conclusão de que pouco adiantava a martirização do corpo com penitências e jejuns prolongados e tanta coisa mais. Dizia que quando o corpo está desnutrido o espírito também enfraquece e não raciocina direito. Creio que esse pensamento é sabedoria.

No Sermão de Benares, Buddha disse: “A sensualidade é enervante, o homem que se entrega aos prazeres é escravo de suas paixões e a busca do prazer é degradante e vulgar. Mas não há mal em satisfazer às necessidades da vida. Conservar o corpo em boa saúde é um dever, pois de outro modo não seremos capazes de aparelhar a lâmpada da sabedoria e conservar nossas mentes fortes e claras. A água cerca a flor do lótus, mas não molha suas pétalas. Este é o caminho do meio, ó bhikkhus, que se mantém distante dos dois extremos.”

Eu compreendo as palavras de Buddha da seguinte maneira: O caminho do meio é a moderação. Não esbanje alimentos! Faça jejum, mas não demore muito nele! Faça sexo sim, mas não se deixe escravizar por ele! Beba a sua cerveja ou a sua cachaça, mas saiba o momento de parar! O correto é não abusar dos prazeres físicos, mas também não deixe faltar alegria para o corpo. Não deixe de fortalecer a matéria, mas não se esqueça: ela é transitória. Só o espírito é eterno.

O Siddharta Buddha citava as “quatro verdades nobres: a existência implica sofrimento; o sofrimento resulta do desejo; o desejo pode ser destruído; e para destruí-lo deve-se seguir os oitos nobres caminhos que incluem idéias, desejos, fala, conduta, meio de vida, esforços, atenção e meditação justos e corretos.” Nessas quatro verdades e nesses oito caminhos o Budismo apóia toda a sua doutrina.

É justamente o desejo que movimenta o mundo. O sistema capitalista incentiva muito o desejo de posse, pois sem ele não há consumismo. E sem consumismo as engrenagens do sistema não funcionam. É desejo de possuir um carro esporte último modelo, é desejo de possuir uma mansão na praia, é desejo de possuir uma linda jovem. É o desejo da matéria sem alma dentro. Isso é tolice. E o sofrimento das pessoas continua. Não lhes sobra tempo para pensar na alma, porque elas têm que lutar muito para conseguir uma posição social superior. Ora, a verdade é que a maioria não consegue satisfazer o seu desejo de posses. Apenas uma minoria consegue: compra, compra, compra, mas isso não preenche o vazio. Então, as pessoas sofrem, sofrem. A maioria sofre porque nada consegue. A minoria sofre porque consegue, e descobre, lá no íntimo com os seus botões, que a posse material é ilusão, é uma satisfação que dura o instante de um suspiro. O que dá alegria à alma é outra coisa: é fazer o bem aos outros, é sentir o quanto as pessoas ficam agradecidas por isso. Riqueza duradoura é saber que as pessoas nos amam pelo que somos e não pelo que temos. A frase é tão velha que causa inveja ao pergaminho em que foi escrita e, mesmo assim, parece-me que ainda não compreendemos a sua essência.

Bons pensamentos, bons desejos, palavras que consolam a dor de outros, conduta correta, maneira de viver honesta, esforço para vencer as imperfeições, atenção ao sofrimento das pessoas e muita meditação. Eu creio que esses oito caminhos, independentes de conceitos religiosos, podem nos levar, um dia, ao Reino de Deus. E se não existir Céu, se não existirem recompensas nem nada, como os materialistas (dogmáticos!) insistem em afirmar, há pelo menos um consolo: agindo corretamente com as pessoas encontraremos um pouco de paz interior e uma alegria mais verdadeira aqui nesta Terra mesmo.

Buddha estava muito velho quando morreu e, evidentemente, muito mais sábio. Acredita-se que as suas últimas palavras, ditas ao discípulo Ananda, que o segurava entre os braços, foram estas: “A decadência é inerente a todas as coisas. Trabalhe para a sua própria salvação com perseverança.”

Buddha usou de ironia em seu último suspiro, mas teve compaixão, demonstrando o quanto compreendia a incoerência da loucura humana. O mais cômico na espécie da qual fazemos parte é que, pelo fato de termos um corpo que respira, que anda, que ri e chora, pensamos que assim estamos totalmente vivos, e por isso... morremos de medo de morrer. Ora, ninguém quer envelhecer, mas a velhice vem. Ninguém quer morrer, e não adianta espernear, a morte vem mesmo. Essas são verdades irrefutáveis. Temos que conviver com elas e aceitá-las; ou meditamos sobre o mistério do desconhecido ou sucumbimos sob o peso do medo da morte e do que pode existir depois dela. Pois é certo que a angústia do medo da morte engaiola lentamente as asas do espírito, turvando a visão e enrijecendo a capacidade de voar para novas dimensões quando é chegada a hora.

Em meu modesto pensar, compreendo que a maior lição de Buddha é o incentivo para que descobríssemos dentro de nós a sabedoria da moderação, para que aprendêssemos a enxergar o ponto do meio que há em todas as coisas: o equilíbrio. Nessa investigação inclui-se também, e principalmente, a desconfiança: Desconfiem de tudo que é excessivo, até mesmo dos homens que são excessivamente santos. Desacreditem da onisciência dos mestres para que o Mestre interior seja ouvido e compreendido. Muitos guias podem orientar; outros podem confundir muito mais. Krishnamurti, muitos séculos depois de Buddha, também descobriu esse caminho, por conta própria, e nos alertou sobre a falibilidade dos mestres, admiravelmente, se considerarmos a sua coragem na abdicação de líder santo a que fora preparado.

No entanto, essa também é uma via de extremos. O ideal é abrir sim os ouvidos às palavras dos Mestres, e com lucidez retirar delas a mensagem que coaduna com a nossa própria descoberta íntima. A verdade, porém, é que cada um tem o seu exato momento de encontrar a iluminação, embora em menores proporções do que Aqueles Espíritos superiores que a vislumbraram e a compreenderam sob a figueira Bo ou sobre o Gtsemâni.

Existe um ponto central em nosso coração onde nenhum mestre ou guia nos consegue levar a não ser nós mesmos. Eles podem sugerir caminhos, podem nos auxiliar nos primeiros passos, podem nos amparar sob o sol ardente e nas etapas difíceis da caminhada, mas o encontro com o Eu verdadeiro é sempre solitário, essa missão é só nossa, de mais ninguém. Mas, para nosso alento, existe essa Voz única que nos pode conduzir na solitária jornada ao coração de nosso próprio mistério, ao Deus que habita em nós. Ouça-a no frescor de cada manhã e notará que o Tao, o Nirvana, o Reino dos Céus têm algo em comum: o milagre da existência. Faça bom uso dessa oportunidade: a de agradecer Átman, a Alma, a centelha divina dentro de nós. Aprendam com o sofrimento, mas não se esqueçam de assumir o direito e o dever do encontro com a alegria.

E, concluindo, não creio que haja ilusão nesta assertiva de Buddha: Cuidado com os extremos!

Pois compreendo que olhar diretamente para o sol não é diferente do mergulho na escuridão da noite. Tanto as trevas como a luz em excesso cegam a visão. Ambas obscurecem o caminho.


(em "Sobre a Cinza e o Fogo: Pequenas Reflexões")

quarta-feira, 11 de março de 2009

A Lenda do Velho Leopoldo



Leopoldo estava na faixa dos quarenta anos. Já não tinha ao seu redor os amigos de outrora. Por isso vivia um tanto recluso com o seu passatempo predileto: apanhava borboletas no campo e depois as fechava em uma sala provida de clarabóia. Nessa sala, onde não falta iluminação natural, Leopoldo também cultivava em pequenas estufas as suas flores pálidas. Mas do que ele mais gostava era mesmo ficar diante da divisória de vidro e observar as borboletas em seus vôos multicores. Eram a única alegria de seus dias.

Leopoldo era um homem sério e amargo, um solteirão desencantado e muitos conheciam a sua história: Algum tempo atrás, na juventude, fora um sonhador, apaixonado pela vida e, após uma incessante procura da mulher ideal, ele foi encontrá-la, inesperadamente, em Nice, uma jovenzinha adolescente. E passou a amá-la acima de todas as mulheres. Admirava as virtudes de Nice, a sua alma já em caminhos tão evoluídos e também a sua impressionante cultura musical: Nice era sublime intérprete de Beethoven, ao piano. As duas almas se encontraram em um forte abraço depois de uma separação de séculos. Ambos sentiam isso. Mas no período em que viviam a felicidade em toda a plenitude, Nice veio a falecer, deixando no coração de Leopoldo o vazio abismal da saudade.

terça-feira, 10 de março de 2009

Reflexões Musicais 1


Os novos compositores têm me cansado. Digo mesmo que têm me deixado frio o coração. Quando o caminho mergulha em neblina, temos que nos apoiar e buscar forças no que ficou de bom para trás. Revisitar os velhos e eternos clássicos sempre é um alento, embora não seja a total e completa solução para o caos. Ao menos, nos dá forças e nos fortalece a inspiração para prosseguirmos.

Havemos de concordar... Parece que está difícil criar algo novo com solidez atualmente, não é? Parece que as artes estão entrando em declínio faz tempo. Os artistas estão meio perdidos, sem saberem qual rumo tomar. Mas isso acontece mesmo em todo período de transição. Relembre o final do século XVI, entre a Renascença e o Primeiro Barroco, com Monteverdi iniciando a Ópera, tomando caminho novo, e mudando o rumo da história, pois a polifonia já havia atingido o auge e estava em declínio pelo excesso. Relembre o último Barroco do século XVIII... Bach, Handel, D. Scarlatti e Rameau foram os últimos representantes do Barroco, tiveram que sair de cena, não por declínio ou esgotamento da criatividade, mas sim porque outra época surgia e pedia outras estéticas, devido às mudanças históricas, período que antecede a revolução francesa, alterando os valores da nobreza. Nessa transição ocorreu o Rococó e a seguir o Classicismo: os filhos de Bach, Haydn, Mozart, Gluck, Boccherini, que considero uma fase intermediária, ponte de preparação para o longo Romantismo. E neste período, foi Beethoven, semelhante a Monteverdi, quem abriu os novos caminhos. De certa forma, ambos encerram uma época e iniciam outra. Depois, outra fase caótica, o final do século XIX e início do XX, com a genialidade, porém repetitiva, de Mahler, R.Strauss, Reger, Rachmaninov, Sibelius, etc., com novas tentativas oferecidas por Scriabin, Busoni, Satie e consolidadas por Stravinsky, Schoenberg, Bartók.

Pergunto: agora, com a arte musical levada ao excesso pelo experimentalismo cerebral, e por isso mesmo exaurida, já que a arte hermética sem emoção perde o seu sentido primordial, como serão os novos caminhos? Isso quanto à música, e as outras manifestações artísticas?

Na verdade, no terreno da música, tenho refletido na semelhança entre o século XVII e o século XX. Ambos são séculos de experimentação, importantes também, sem dúvida, porém poucos compositores deixaram obras consolidadas, tanto naquele como neste século mais recente. Stravinsky seria um Monteverdi do século XX, embora não tenha consolidado algo tão importante como foi o caso da Ópera que tem durado, com poucas alterações no decorrer do tempo, se comparada à estrutura dos outros gêneros. No século XVII, Schütz, Buxtehude, Pachelbel, Stradella prepararam as vias para a suprema arte de Bach e Handel, da mesma forma que muitos compositores do século XX, experimentando em excesso, abriram caminhos para outros que hoje atualmente vivem em algum lugar, iniciando a construção de nova obra.

A tendência da Humanidade é seguir as alternâncias. Conforme a Iogha, há uma tendência lógica de seguir passo a passo o sentido das camadas metafísicas: coração, cérebro e mente espiritual. O século XIX foi o período da emoção passional, o XX foi extremamente cerebral. Espera-se, pela sequência, tomando como base a energia que tende a mudar e se elevar, que o século XXI seja o tempo da espiritualidade, após as tormentas da transição que vivemos. Penso sinceramente que muitos criadores da música de nossos conturbados tempos serão lembrados como importantes contribuintes, porém poucos serão lembrados como consolidadores de uma arte equilibrada e definitiva para a época. O tempo mostrará isso. Quanto à música do século XXI, esta ainda não foi escrita. Esperançoso, creio que os novos Tempos, ao aproximarem de seu auge, mostrarão uma arte que unirá a grandeza de Bach, de Mozart e de Beethoven em um único estilo: com conteúdo em uma Espiritualidade elevada como a de Bach, estética com base na Harmonia das Esferas de Mozart, junto com os ideais sublimes de Humanidade defendidos por Beethoven.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Gustave Flaubert: A Lenda de S. Julião Hospitaleiro



Continuando o ciclo de lendas reescritas por grandes escritores, seleciono aqui esta, que de maneira alguma pode ser classificada como divertida; é de conteúdo trágico, diríamos, e possui mesmo similaridade com a história do Rei Édipo. Pela atmosfera genialmente construída, pela beleza da sintaxe e um dos desfechos mais belos sobre redenção, este é um dos contos mais impressionantes que já tive oportunidade de ler. A narrativa é de tamanho médio, quase uma novela, um pouco longa para uma postagem em blog, mas chegando ao final da leitura não creio que alguém possa arrepender do tempo dedicado a cada um dos parágrafos. Perfeição é a característica dessa obra. Não poderia ser de outra maneira. Trata-se de Gustave Flaubert, um dos mais perfeitos escritores de que se tem notícia na história da literatura. É o autor que deu à prosa a dignidade da poesia no sentido de lapidação e condensamento, ou seja, a arte de dizer muito com poucas palavras. Cada parágrafo é como um soneto de perfeição estilística. Esse ficcionista francês, obstinado com forma e conteúdo, passava semanas e semanas burilando uma única página até tornar cada frase um diamante. Não estranhamos o fato de ter deixado poucas obras, entre elas 5 romances: ‘Madame Bovary’, que é a obra de estréia e continua sendo a mais famosa, seguida de ‘Educação Sentimental’, ambos se inscrevem como os primeiros romances verdadeiramente realistas da literatura; os outros dois são “Salammbô”, romance arqueológico que reconstitui a Cartago na época das guerras púnicas, e o experimental ‘As Tentações de São Antão’, que assusta até hoje pela modernidade; o quinto, ‘Bouvard e Pecuchet’ ficou inacabado. Além desses romances escreveu 3 contos, apenas 3 extraordinários contos: o realista e comovente ‘Um Coração Simples’, o histórico ‘Herodíade’, e esta “Lenda de São Julião Hospitaleiro”, que é maravilha das maravilhas, embora seja a obra que o autor demorou menos tempo para escrever, cerca de 2 meses. Imaginem o êxtase que deve sentir um leitor apaixonado por linguística, e que lê o francês com fluência, quando degusta cada palavra desse mestre, que não é somente um escritor para escritores, como costumam chamá-lo. A sua Obra é patrimônio da Humanidade: é de todo mundo, todos podem e devem se enriquecer com ela. Uma boa tradução nos dá idéia da lapidação flaubertiana, como a que segue, belo trabalho de Luís Lima para a Editora Três:

domingo, 8 de março de 2009

O Ideograma da Paz: Homenagem às Mulheres



Há um teorema da psicanálise que diz mais ou menos assim: A feminista mais exaltada é aquela que no fundo mais sente o complexo de inferioridade em relação ao homem, devido à síndrome da castração, e o machista mais arrogante é aquele que sente de forma mais terrível o pânico antecipado da impotência.

Na guerra pouco camuflada entre machos e fêmeas há lanças armadas e escudos na tentativa de esconder os medos mais íntimos e as raivas mais ilógicas, ocultas em vontades sexuais, em desejos comprimidos, achatados no porão do subconsciente. Nesse ponto Freud continua com razão: "Há dois desejos que movem o mundo: um é o desejo de ser importante e de ter poder, e o outro é o desejo sexual." Esse segundo desejo, o sexual, é uma das mais poderosas facetas do jogo do poder. Os artifícios de sedução são estratégias de guerra na tentativa de uma conquista para se chegar ao domínio. Mas, semelhante a todos domínios, este também é temporal e exaustivo, que sempre requer novas táticas e emboscadas. Se essa energia fosse canalizada para duplicar a prática da compreensão e do respeito na convivência entre os dois sexos o resultado seria muito mais gratificante e produtivo.

Ora, uma plataforma jamais se sustenta sobre um único pilar. Mulheres e homens só podem ser unos e completos quando associarem os seus valores, já que estes são semelhantes e complementares. Enquanto existirem feminismo e machismo haverá cisão, e com ele o rompimento dos pilares que sustenta a harmonia da espécie humana. Existirão guerras, não guerras às claras, mas aquelas mais terríveis, que acontecem nos bastidores, nas sombras, no jogo da mentira, e o que pode vir de tudo isso: solidão, mais, muito mais solidão.

É interessante que na China, civilização onde nasceram tantos sábios, escreve-se PAZ da seguinte forma: são ideogramas conjugados, um deles significa teto; acima dele, o raio e o trovão. Abaixo do teto, inscreve-se o correspondente pictórico de mulher, significando com isso que a ‘mulher dentro do lar traz a paz’, ou em símbolo estendido: ‘a mulher protege o lar das tempestades’.

De fato, a mulher possui um papel fundamental na família e, consequentemente, na sociedade. Entre outros atributos, é a que rege a educação afetiva e moral dos filhos e, tendo o natural sentido visionário de compreender intuitivamente a vida, possui a sabedoria da sensatez. O homem, sendo de natureza ativa e possuindo o ímpeto das edificações práticas, muitas vezes confunde as partes pelo todo, esquecendo-se de que a mulher em sua meticulosidade contemplativa consegue compreender maravilhosamente o mecanismo que move as complexidades da vida.

Na verdade, as mulheres nunca reclamaram de sua nobre missão de esposas e educadoras. Reclamam é de outra coisa. A feminista revoltada de hoje é o triste resultado dos longos anos de desrespeito e da falta de valorização por parte da maioria dos homens.

Já diziam os sábios do oriente que a mulher bem amada é capaz de prodígios; a mulher, quando compreendida como igual, aumenta a sua capacidade de apoiar o homem e, às vezes, com leal sinceridade torna-o maior diante de si mesmo. São inúmeros os casos de grandes homens que só o foram porque tinham grandes mulheres apoiando-os, impulsionando-os em suas metas. Esse motivo já bastaria para que os homens protegessem as mulheres como um inestimável tesouro.

Creio no dinamismo do homem que estende as mãos, aperta o barro e constrói as catedrais sonhadas. E creio também na essência da mulher, na sua capacidade intuitiva de gerar a paz. Eu, longe de ter a sabedoria que possa compreender a partir de que ponto essa estrutura harmônica dos complementos foi rompida, apenas sinto que o mundo ocidental moderno jamais poderia ter esquecido a sublime posição da mulher como conselheira do homem.


sábado, 7 de março de 2009

Johann Wolfgang von Goethe: A Lenda da Ferradura



Este admirável poema, talvez colhido do cancioneiro popular, foi escrito por Goethe, um dos maiores poetas da literatura mundial. Depois de Leonardo da Vinci, Johann Wolfgang von Goethe é o gênio mais completo de que se tem notícia, pois envolveu-se com quase todas as áreas do conhecimento humano. É fato indiscutível, Goethe e Schiller são os maiores nomes da literatura alemã, assim como Dante é da italiana, Shakespeare da inglesa, Cervantes da espanhola, Camões da portuguesa. Goethe escreveu poemas, peças de teatro, romances, novelas, diários, autobiografias e ensaios, destacando-se genialmente em todos os gêneros. Foi também pintor e ator de talento. Estudioso de Ciências Naturais, foi o responsável pela descoberta de que o crânio é o desenvolvimento da última vértebra da coluna que sustenta o corpo humano; em Ótica trabalhou vários anos na obra "Teoria das Cores", bastante controversa, por sinal; em Botânica, deixou-nos em versos a "Metamorfose das Plantas", e outros tratados científicos. Não é simples escrever sobre um homem assim. Em outra oportunidade faço um breve comentário de sua vida e obra. Agora, porém, a intenção é mostrar esta "Lenda da Ferradura", como curiosidade, pois é diferente de tudo que o erudito autor escreveu. É uma parábola despretenciosa, leve, divertida, quase folclórica, e com um pitada de ironia, devido aos personagens utilizados, já que o poeta foi adepto convicto do paganismo. Sem me estender mais, convido-os para se deliciarem com estes versos na tradução de Alberto Ramos:

A Lenda da Ferradura

Quando ainda obscuro e desconhecido
Nosso Senhor andava na terra
Muitos discípulos o seguiam
- Que raras vezes o compreendiam,
Amava doutrinar as massas
Nas ruas amplas e nas praças,
Pois à face dos céus a gente
Fala melhor e mais livremente.
Ali, dos seus divinos lábios
Fluíam os ensinamentos mais sábios;
Pela parábola e pelo exemplo
Faziam de cada mercado um templo.

Certa vez quando, em paz e santidade,
Chegava com os seus a uma cidade,
Viu qualquer coisa luzir na estrada;
Era uma ferradura quebrada.
Disse a São Pedro com brandura:
- "Pedro, apanha essa ferradura!"
Porém São Pedro, no momento,
Tinha ocupado o pensamento
E absorto em êxtase profundo,
Sonhava-se o dominador do mundo,
Rei, papa, ou tal que se pareça.
Aquilo enchia-lhe a cabeça;
E havia de dobrar a espinha
Por uma coisa tão mesquinha?
Se fosse um cetro, uma coroa,
Mas uma ferradura à toa...
E foi seguindo, distraído,
Como se não tivesse ouvido.

Curvou-se Cristo, com doçura
Celeste, angélica, humilde,
E ergueu do chão a ferradura;
E quando entraram na cidade
Vendeu-a em casa de um ferreiro.
Comprou cerejas com o dinheiro.
Guardando-as, à sua maneira,
Na manga – em falta de algibeira.

Dali saíram por outra porta.
Fora a campanha estava morta;
Nem flor nem sombra; ao longe, ao perto
Era o silêncio, era o deserto,
Era a desolação; ardia,
Torrava, o sol do meio-dia.
Que não valia em tal secura
Um simples gole de água pura !
Nosso Senhor caminha à frente.
Deixa cair discretamente,
Furtivamente, uma cereja
Que Pedro apanha, salvo seja,
Com cabriolas de maluco.
A frutinha era mesmo o suco.
Outra cereja no caminho
Atira o Mestre de mansinho,
Que Pedro apanha vorazmente.
E assim por diante, não uma vez somente,
Fê-lo o Senhor dobrar a espinha
Tantas vezes quantas cerejas tinha.
Durou a cena um bom pedaço.
Por fim, disse o Senhor com ar prazenteiro:

- “Pedro, se fosses mais ligeiro
Não tinhas tido este cansaço.
Quem cedo e a tempo ao pouco não se obriga,
Tarde por muito menos se fadiga.”

(1797)

Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) 



sexta-feira, 6 de março de 2009

Hermann Hesse: Lenda Chinesa


Este pequeno texto foi publicado em 1959, numa revista suiça, pelo grande escritor, poeta e pintor alemão Hermann Hesse. Não se sabe se é de autoria do próprio Hesse, ou uma tradução sua de algum original chinês, já que foi um apaixonado pela cultura oriental, transcrevendo e compilando aforismos e lendas ao longo da vida. É um texto interessante e divertido, que nos incentiva a refletir sobre a (in) exatidão do real e que todos os pontos de vista possuem a sua parte de verdade.

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Conta-se de Meng Hsie:

Quando ele soube que os jovens artistas procuravam ficar de cabeça para baixo, a fim de ter uma nova perspectiva das coisas, também Meng Hsie se submeteu imediatamente a esse exercício, e após tê-lo experimentado por algum tempo, disse a seus discípulos:

“De maneira nova e mais bonita o mundo se espelha em meus olhos, quando fico de cabeça para baixo.”

Isso se divulga e os renovadores entre os jovens artistas orgulharam-se bastante dessa confirmação, pelo velho mestre, de suas experiências. Sendo que ele era conhecido como bastante lacônico e educara seus discípulos mais por sua presença e seu exemplo que por ensinamentos, qualquer pronunciamento dele era levado em conta e divulgado.

E logo depois que aquelas palavras tinham encantado os renovadores, porém causado estranheza e até ira em muitos velhos, tornou-se público um outro de seus ditos. Ele se teria ultimamente, assim se contou, manifestado dessa maneira:

“Que bom que o homem tenha duas pernas! Estar de cabeça para baixo não é bom para a saúde e, quando se erguer aquele que estava de cabeça para baixo, o mundo se espelha duplamente lindo nos olhos do homem que está de pé.”

Essas palavras do mestre causaram escândalo tanto nos jovens de cabeça para baixo que se sentiram por ele traídos ou ironizados, como também aos mandarins.

“Hoje”, disseram os mandarins, “Meng Hsie afirma isso e amanhã o contrário. Mas é impossível que existam duas verdades. Assim, quem poderá ainda levar a sério o velho que se tornou insensato?”

Foi denunciado ao mestre como os renovadores e os mandarins dele falavam. Ele apenas riu.

E como os seus pediram dele uma explicação, ele disse:

“Existe a verdade, ó adolescentes, e essa não pode ser abalada. Verdade, porém, a saber, opiniões sobre a realidade, expressas por palavras, há inúmeras, e cada uma é tão certa quanto é errada.”

Apesar de todos os esforços envidados, os discípulos não conseguiram obter dele maiores explicações.