sexta-feira, 20 de agosto de 2010

A Alma Brasileira de Villa-Lobos



Ainda que detectemos no autodidata Villa-Lobos a melodia de Puccini, e às vezes a atmosfera de Wagner, ou a técnica de orquestração de D’Indy, e até mesmo a maneira como Sibelius tratava a profundeza das florestas, que Villa assimilou e transformou ao seu próprio modo; ainda assim é preciso ter em vista que as grandes influências do músico na idade madura foram mesmo Debussy e Bach, e muito mais a harmonização de Ravel e o ritmo de Stravinsky; sem jamais esquecer a importância decisiva que foi o choro, música popular de alto nível, amada por Villa-Lobos desde a infância, e da qual assimilara a riqueza do contraponto e o colorido dos timbres. Nessa amálgama toda, Bach funciona mais como o mestre inspirador do que uma diretriz de estilo. Mesmo assim, nessa pluralidade de vozes, o grande Villa encontra a maneira própria de cantar, consegue destacar a sua voz como legítimo representante do Brasil no coral das nações.
 
Até hoje não é possível confirmar se todas as viagens relatadas pelo compositor foram verdadeiras, pois gostava de alimentar a lenda de que havia mapeado quase todos os estados do Brasil, o que é pouco provável. Talvez não tenha se aventurado pelo interior da floresta, como dizia. No entanto, conseguiu captar o mistério das densas matas, a flora e a fauna do Amazonas. Uma coisa é certa: Villa-Lobos era um intuitivo, bastava-lhe uma simples visita a um determinado lugar e já compreendia o folclore e os costumes da região, anotava a melodia e depois a transmutava na complexidade instrumental da orquestra ou nas diversas formações camerísticas. Quando ouvimos o Quarteto de Cordas No. 6 quase podemos tocar a umidade da selva escura; quando ouvimos o Choros No. 10 e os poemas sinfônicos que tratam da Amazônia, sentimos o canto do azulão e do uirapurú; nas Bachianas 3 e 4 é nítida a presença do pica-pau e da araponga. É só fecharmos os olhos, aguçarmos o ouvido para termos a certeza: Villa esteve lá, sentiu todos esses sons, mesmo que por alguns instantes. Ou talvez tenha sentido tudo somente na imaginação, com o ouvido e os olhos da alma? Todos sabem que é característica da arte essa magia, a de abolir o tempo e o espaço e transformar o imaginário em real.

Levando em conta esse dom de vivenciar os lugares, podemos compreender que Villa-Lobos é o Rio de Janeiro, é a Amazônia, é o sertão nordestino, é campo e cidade, é metrópole e aldeia, é quarteto de cordas e flauta indígena, é violoncelo erudito, maracá, chocalho e reco-reco, é choro e modinha trajando casaca nos palcos do mundo. Por meio de estruturas não convencionais e timbres ousados o compositor nos conta do gingado mole do caipira das roças mineira e paulista, do arguto capadócio carioca conversando nos botequins e jogando bilhar; mostra-nos os índios dançando nas tabas e o sacolejante trenzinho percorrendo planícies, colinas e vilarejos do interior. E, de repente, no meio de uma peça de sonoridade áspera surgem o folclore do nordeste, do centro-oeste, do sudeste, do norte e do sul, o som e as danças da terra: a embolada, o martelo, a catira, a quadrilha. Não é novidade afirmar que a música de Villa-Lobos é riquíssima, pois é reflexo da multifacetada cultura brasileira!

Não apenas no Choros No.5 deveria constar o subtítulo Alma Brasileira. Em Villa-Lobos transparece a todo instante a essência da alma de nosso povo: afável, ora dinâmica ora indolente. O compositor nos mostra, principalmente na terna melodia de algumas peças, a capacidade que o brasileiro tem de sorrir nas adversidades e de receber com afeto todos os povos da terra. Exemplos exatos são os Prelúdios para Violão.

É correto dizer que Villa-Lobos não é apenas o folclore; antes, é o Brasil em música. E mais: trata-se de música nacionalista que avançou fronteiras, tornando-se arte universal, respeitada em todos continentes. Continua moderna, porém comunicativa. Não se apóia em ruídos. Todos podem entendê-la; alguns, com um pouco de esforço, mas o resultado é sempre gratificante, porque, como disse Beethoven, certa vez: “é arte do coração para o coração.”


Foto: Pôr-do-sol no rio Amazonas.
(direitos de Juliano de Alencar Vasconcelos)


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Aqui, algumas das mais importantes e populares peças do grande Villa na interpretação maravilhosa da pianista Clara Sverner.

A peça que dá título ao CD, e ponto alto da gravação, é o Choros No. 5, com o subtítulo de Alma Brasileira, talvez a obra-prima do compositor no gênero. E prestem atenção no ritmo indolente que Clara Sverner consegue em A Lenda do Caboclo, e a maneira como capta a beleza da Valsa da Dor e a sutileza como interpreta a suíte impressionista A Prole do Bebê! Também digna de nota é a leitura da pianista nesta versão original da Bachianas Brasileiras No. 4. Mas, dentre todas, a minha preferida é Impressões Seresteiras. Como adoro essa peça que pertence ao famoso Ciclo Brasileiro!


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