sábado, 4 de setembro de 2010

Cícero Acaiaba: 3 Elegias


Faltam-me as palavras para comentar um verso que seja dessas elegias do mestre Acaiaba. Diante da beleza dessas metáforas, recolho-me ao silêncio, com humildade e profunda admiração.

Elegia IX

Contemplou o dia murchando
recolhido em sua própria sombra,
e o que via na fímbria lívida das montanhas
era o pulsar da saudade. Ah, como se morre
com tantas nuvens ricas de sol, com tanto pássaro e no espaço
aberto de par em par até o horizonte,
com esse azul de pétala orvalhada!
Mas de repente as árvores ficam imóveis,
como um rio de branco sussurro espraia-se o rebanho,
e bem longe se ouve na capela
a gangorra dos sinos.
Tudo se resumia no silêncio
de uma estrela maior fincada na areia do céu.
A tarde morreu de manso,
tão de manso
o vento acende as luzes com um tênue sopro.

Elegia XX

Uma planície deserta
a sombra de teus olhos.
Mas esse é o teu mundo,
continua a ser o lugar da varanda
com o jarro das samambaias, a cintilação dos antúrios,
a suave ondulação da escada
para o pequeno tanque dos peixes transparentes.
Caramujos retorcidos
a brusca imobilidade de tuas mãos.
Mas aqui é o teu reino,
existes em sossego no recanto da sala,
e só a música do silêncio escorre as cortinas
na janela onde a tarde te hospeda.
Minúsculos casulos
dormem teus pés o remanso das praias remotas.
Mas prossegue teu jardim de mágicas,
o dócil vôo de teus pássaros, a mangueira,
o mesmo sol coado na peneira das árvores,
as formigas ceifando a relva, o cheiro úmido da terra,
a chuva que agora dessedenta teu corpo,
ah, teu corpo que é o mesmo e se esgarça como nuvem
lentamente lentamente
e vai sumindo num redemoinho de trevas.

Elegia XXXVIII

eu vim para dizer que não tivesse medo
bastava deitar-me com certa cautela
alisando as rugas da túnica inconsútil:
o essencial é apagar os duros ruídos
entrelaçando os dedos das mãos muito brancas.
eu vim protegido na réstia da sombra
para fechar seus grandes olhos tristes
ainda fixos na tarde através do Calvário
e desmanchar algumas pétalas de rosas
sobre os cabelos imensos.
eu vim para ensinar à boca cerrada
a nostalgia amarga do silêncio
e ao corpo embalando um rio de sono
o caminho em surdina no longe da infância.
eu vim como a hora fatal do relógio
que nunca se espera que chega tão cedo
e cravo suave o espinho do tempo
no corpo que morre – ah, puro segredo!



(de “A Última Elegia e 30 Noturnos de Minas”,
  Ed. Scortecci, 1987)

Cícero Acaiaba (1925-2009)